A edição Ecologias Espaciais do programa Residências Partilhadas/LabCrítica reuniu três núcleos artísticos brasileiros interessados em investigar as conexões entre arte, performance e políticas de produção e ocupação de espaços, tendo as ecologias de cuidado comunitário como foco principal. Taís Almeida e Pablo Carvalho, coordenadores de diversos projetos desenvolvidos no bairro de Cavalcanti, Projetos Cavalcanti, foram participantes.
Projetos Cavalcanti nasce da associação de três projetos que atuam no bairro de Cavalcanti, na zona norte do Rio de Janeiro, desde 2020, quando jovens moradores do bairro criaram a “Frente Cavalcanti”, com ações de prevenção à Covid19 na comunidade e de combate à insegurança alimentar, agravada pela pandemia. Logo, o grupo expandiu suas ações rumo ao campo cultural e educacional, organizando a rede social colaborativa “Cavalcanti-se”, cujo objetivo é colecionar histórias e criar memórias sobre o bairro, e o projeto artístico “BERRO”.
A partir do repertório construído no decorrer desses três projetos, o coletivo Projetos Cavalcanti vai além da partilha territorial, se orientando pelo desejo de repensar o que significa “ser de Cavalcanti”. Assim, em meio as atividades desenvolvidas em 2022, criou e realizou ações de arte postal na edição Ecologias Espaciais das Residências Partilhadas/LabCrítica.
Antes de tudo, é preciso entender um pouco mais sobre Cavalcanti. Bairro periférico da zona norte do Rio de Janeiro que faz fronteira com outros oito bairros, Cavalcanti integra a região administrativa de Madureira e está em 83° lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade do Rio de Janeiro, segundo o último censo. O bairro é cortado pela linha ferroviária que divide seus recursos e particularidades geográficas. Dentro de Cavalcanti se destaca a presença do Morro da Primavera, da Favela Parque Silva Vale, e as proximidades e fronteiras com os Morros do Urubu, do Juramento e o Complexo da Serrinha. É importante destacar que, dentro de uma perspectiva de cidade, o bairro tem sido invisibilizado. Poucos investimentos e políticas públicas são direcionados a esse território, desconhecido até mesmo por moradores do Rio de Janeiro, e estigmatizado pelas notícias de violência, assim como muitas favelas da cidade.
Mergulho na história do bairro
O projeto iniciou em janeiro de 2022, com os coordenadores Tais Almeida e Pablo Carvalho mergulhando na pesquisa histórica sobre o bairro de Cavalcanti. Interessava pesquisar sobre temas que poderiam nos trazer a história do bairro, dados como a questão ferroviária, sobre os bairros Thomaz Coelho e Cavalcanti em 1908, pesquisas na Revista Careta e em anúncios em jornais de 1908, o abandono do polo industrial da Silva Vale, informações sobre a Igreja de São Pedro e dados populacionais e geográficos do bairro. Também foi feita uma caminhada conjunta pelo bairro com o objetivo de aguçar o olhar e as percepções, perceber elementos arquitetônicos ou relações ainda não vistas e fazer pequenos registros com o celular.
Muitas reuniões foram realizadas de forma online. Entendemos que essa é uma situação de segurança, pois o horário das reuniões seriam na parte da noite e os participantes moram em lados diferentes do bairro. Atravessar os lados é correr risco de sofrer uma violência urbana, devido a incidência de assaltos e a disputa de facções diferentes que dominam cada lado do bairro. Enquanto isso, prosseguimos entusiasmados com a história de Cavalcanti. Coletamos algumas páginas de jornais antigos através dos sites Hemeroteca Digital e Arquivo Nacional. Nos interessava caminhar sobre dados registrados, insistir e investir nessa procura dos registros, das legitimidades de outras narrativas possíveis, dados que ainda não conhecemos.
Nei Lopes, no livro “Dicionário da Hinterlândia Carioca” menciona que o homenageado que dá nome ao bairro de Cavalcanti, sopostamente é um homem preto: “A estação ferroviária, antiga Estrada de Ferro Melhoramentos do Brasil, inaugurada em 1892, foi batizada em homenagem a Matias Cavalcanti de Albuquerque, funcionário da ferrovia, apelidado de ‘Gungunhana’. Como esse era o nome de um rei africano morto em luta contra os portugueses em 1895, supomos que o homenageado tenha sido um homem negro”. A partir de então, passamos a investigar a história de Gungunhana, ressoando a manifestação dessa frase: CAVALCANTI É PRETO.
Nossas primeiras ações artísticas foram intervenções urbanas. Tomamos as vias principais de ambos os lados do bairro (que é fraturado, ou melhor, dividido pela linha do trem), e escrevemos palavras manifesto que misturam nossa proposição artística e a pesquisa. A tarefa foi arriscada, pois além da pichação ser uma infração jurídica, o horário em que realizamos a ação é conhecido por ter uma série de roubos e/ou conflitos armados no perímetro. Conhecendo nosso campo de possibilidades, percebemos que ser anônimo era a melhor das opções.
Mas o enfoque do projeto consistiu em transformar Gungunhana, esse homem que não tem um rosto marcado na iconografia brasileira, em algo com materialidade. Tentamos encontrar rastros sobre sua participação na sociedade brasileira do século XIX, e não encontramos; buscamos compreender quem era Gungunhana e como a sua figura atravessava o bairro; e então passamos a recontar a história do bairro por meio da negritude.
A falta de informações visuais se mostrou uma oportunidade profícua para desenvolvermos uma nova iconografia. Dessa escolha, partimos para a apropriação visual do próprio Gungunhana, e depois para o desenvolvimento e aprofundamento sobre o que é arte postal.
Provocada pela afirmação Cavalcanti é Preto, a artista visual Yaya criou esta arte (ao lado) para ser grafitada em uma empena em Cavalcanti. Yaya conheceu a história do bairro e a pesquisa que estávamos fazendo ao participar do 1º Mutirão de Grafitte da Frente Cavalcanti. O evento, em maio de 2022, reuniu 10 artistas mulheres do Rio de Janeiro e de São Paulo para, com a permissão dos moradores, realizar grafites na rua Ingá, onde a sede da “Frente Cavalcanti” está instalada.
A “Casa da Frente”, como é conhecida, hoje cumpre o papel de sede multifuncional de todos os empreendimentos que participaram da residência pelo bairro. Ela foi reformada, em 2022, com parte do recurso do projeto, permitindo que o espaço, antes em condições precárias, pudesse continuar sendo compartilhado pelo coletivo. É importante salientar que todos os participantes do projeto desenvolvido são moradores do território.
Em paralelo, com a colaboração de Millena, representante da “Frente Cavalcanti” que se juntou a nós, criamos diversas colagens, linguagem que escolhemos para dar prosseguimento aos trabalhos de arte postal. Elaboramos colagens que sintetizavam o que estávamos pesquisando e realizando. Partimos da ideia de um “cria”, que é muito presente nas artes sobre periferias do Rio de Janeiro, mas consideramos ir além disso. Com base em uma poesia popular que brinca com a oposição entre “ser Cavalcanti” e “ser cavalgado”, a foto de Pablo se posiciona como figura central e representativa dessas oposições: O que é ser cria e ser criado? ser negro e ter esse sobrenome no final do século XIX? ser um rei despojado?
Reunimos elementos e atravessamentos que acumulamos durante todo o processo, nossos materiais de pesquisa, para criar uma imagem a ser enviada para os moradores de Cavalcanti, dentro de envelopes de cartas. A colagem recebeu um carimbo personalizado com as frases que nortearam nossos anseios e feituras: “Cavalcanti é preto” e “Procure saber”. Com a proposta de gerar impacto nas proximidades da estação, 100 cartas foram colocadas dentro das caixa de correio de casas do bairro.
Em outra colagem, os códigos eclesiásticos entraram no circuito. Produzimos um “santinho” que, de um lado, reunia a imagem de Gungunhana, as imagens de São Cosme e São Damião e o dizer “Cavalcanti é preto”, e, no verso, a citação do livro de Nei Lopes. Os “santinhos” foram entregues aos moradores na estação de trem e na Igreja Apóstolo São Pedro, cuja história se confunde com a história do bairro. Dois locais centrais de nosso território, no que tange às relações sociais e, por isso, foram escolhidos.
Ainda com a ideia de fazer circular intervenções artísticas, carimbamos notas de dinheiro com os dizeres “Cavalcanti é preto” e “Procure saber”, e fizemos compras no comércio do bairro para que as notas passassem de mão em mão – uma forma de hackear o sistema do capital.
Para ler o relatório completo acesse Relatório Final Projetos Cavalcanti