Mientras Bailamos (2019)

Mientras Bailamos (2019) é uma série mixed-media e performance situada realizada por Sérgio Andrade como artista residente em lugar a dudas, Cali – Colômbia, um dos resultados do projeto Rehacer, desenvolvido com incentivo do FUNCULTURA.

A série é composta de 7 peças (entre video-instalações, coreografia, composição de materiais residuais, textos e roteiro de palestra-performance) recombinadas em 5 ações cumulativas (de intervenção urbana, circuitos de exposição e palestra-performance) em diálogo radical das distopias do espaço urbano, as lutas sociais que tomaram a cidade de Cali durante a residência e as tele(contra)coreografias co-emergidas no atual contexto de aliança entre neoliberalismo, neocolonialismo e neofascismo nas Américas.

Imagens do circuito de video-instalações de MB. © Sérgio Andrade, 2019.

Imagens do Open Studio lugar a dudas, 14 de dezembro de 2019. © lugar a dudas, 2019.

 

Aqui e lá, aqui é lá

Mientras Bailamos (MB) surgiu a partir de diálogos radicais com os repetidos episódios de violência cometidos contra os/as artistas residentes, os/as trabalhadores/as de lugar a dudas e outras pessoas vizinhas, quando um morador do prédio em frente à residência lugar a dudas, igualmente vizinho, disparou mais de cinquenta tiros de balines de chumbo contra nossas portas e janelas, entre os meses de outubro e novembro de 2020. Os frequentes disparos telecoreografavam – telematicamente, teleologicamente e telepaticamente – as políticas de gestão da violência, do medo e da morte que ritmam a atual distopia urbana engendrada pelo “fator ‘neo'”, termo que Andrade vem elaborando conceitualmente para demarcar a necrofilia co-dependente entre neoliberalismo, neocolonialismo e neofascismo nas Américas.

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©Sérgio Andrade, 2019.

O período de ocorrência dos disparos se encontrava, ainda, com a emergência do Paro Nacional e das jornadas de manifestações na Colômbia iniciadas também em novembro daquele ano e que seguiram no ano de 2020 pelas ruas de Cali, Medellín, Bogotá e diversas cidades do país. Em Cali, os insistentes atos coletivos de cacerolazo congregavam danças, músicas, batuques, canções e consignas na praça, desafiando em multiplataformas nas ruas e nas redes a complexa conjuntura de poder no contexto colombiano e, sobretudo, denunciando as inconformidades com a necrofilia dos sistemas econômico, político e ambiental. Os cacerolazos respondiam, sobretudo, à repugnante história dos falsos positivos[1], aos assassinatos sumários de líderes sociais e aos malogros do acordo de paz do Governo com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), somando-se ainda às pautas da juventude voltadas à defesa da Educação, reivindicando mais investimentos no setor e melhores salários para professores/as. Por outro lado, em contradança, tais atos foram fortemente acompanhados pela desproporcional força de repressão do Estado e seus aparelhos ideológicos, com compulsivos atos de violência policial e de estado de vigilância constante, decretos de toque de recolher e a perseguição a civis com bombas, cavalos, cassetetes e balas de borracha – as controversas “armas não letais” nas praças, avenidas e ruelas, e operações midiatizadas por diversas plataformas digitais e veículos corporativos de comunicação que replicavam, expandiam e agenciavam a política das ruas e suas disputas.

 

Imagens do cacerolazo no CAM, Cali. ©Sérgio Andrade, 2019.

A residência artística lugar a dudas, La Resi, está localizada na Av. 8N, bem próxima ao centro da cidade e a cerca de 900 metros do Centro Administrativo Municipal (CAM), local de convergência dos diversos movimentos sociais que cruzaram toda Cali em jornadas de protestos. Pela sua proximidade, La Resi escutava os sussurros e os tremores das caçarolas a caminho da praça, das bombas e dos helicópteros vigilantes que sobrevoavam por horas a região…  a avenida passava em frente a janela do quarto em que Sérgio Andrade dormia e também trabalhava na sua escrivaninha, na época, trabalhando em um ensaio sobre as coreografias do medo emergidas no neofascismo brasileiro. Da janela de um vizinho anônimo, entre outubro e novembro de 2019, foram disparados mais de 50 projéteis de chumbo (5,5mm) que perfuraram a vidraça do quarto do artista. A situação não lhe era nova, porém. Meses antes, nas casas em que morou no Rio de Janeiro, o artista já estava acostumado a escutar rajadas de tiros cruzando os céus cariocas diariamente ritmando coreografias de desvio exaustivas entre casa e rua. Especialmente, o último apartamento em que morou provisoriamente na cidade, no bairro de Santa Tereza, foi alvejado por uma bala perdida de fuzil que atravessou a janela e perfurou a parede do quarto. Foi através das transposições hemisféricas entre memórias, coreografias, buracos e desvios, bem como pelo andamento da pesquisa teórica em curso que se instauraram as primeiras alavancas da série.

Mientras Bailamos (MB) se configurou, então, como uma práxis de performance situada, um exercício de imaginação radical que borrou linhas de ação e de solidariedade entre a prática artística, a ação política e a pesquisa acadêmico. A série ativa distributivamente (por coreografias, vídeos, objetos, resíduos, instalações, intervenção urbana, palestra-performance e textos) a correlação de forças que não somente partiu de contextos, mas que, sobretudo, construiu ambientes coletivamente, tele(contra)coreografando heterotopias mais vivíveis entre cidades, corpos, memória e ação, entre aqui-e-lá, casa-e-rua.

(…) enlaçar Cali ao Rio de Janeiro, a Santiago do Chile, a Montevideo, a Ciudad de México, a Nova York, a La Paz, a Montreal e tantas outras cidades das Américas que se cansam e se levantam, tele(contra)coreografam os enfrentamentos da intensificação de forças do neofascismo, neoliberalismo e neocolonialismo. Uma transfronteirização de imaginação radical que faz transbordar hemisfericamente a constelação de diálogos entre o agora, o passado e a futuridade, entre La Resi, as ruas e a comunidade vizinha. Performar missivas a contragolpes e contradisparos também e não somente em resposta ao vizinho dos balines de chumbo atirados de cima para baixo. Contra-espacializar cidades, vizinhos, artistas, políticos, polícias, bombas e balas, os sussurros na cidade.

Sérgio Andrade, 2019.

Das ações

#1 – Intervenção na fachada de La Resi (área total de 48m2 apx.), aplicação de painel lambe-lambe no dispares don’t shoot não dispare, instalado no dia 27 de novembro. Impressão em papel-jornal, produzida pela gráfica e cooperativa La Linterna, que opera máquinas de impressão litográfica fabricadas no século XIX. O texto “no dispares don’t shoot não dispare” se repete exaustivamente (mais de 700 vezes), deslizando no efeito gradiente entre as cores azul, laranja, verde e magenta. A intervenção na fachada não somente se posicionava frontalmente ao prédio do “disparador”, como também estava localizada na Av. 8N, caminho do CAM, ponto de convergência das manifestações e dos conflitos com a força policial. Performava assim uma missiva entre janelas e a dança das ruas.

#2 – Videoinstalação I, sem título (7’4’’) – perspectiva 1, formada de uma imagem projetada de dentro do quarto em que eu dormia em La Resi em direção à rua. O feixe de luz ao passar pela porta de vidro empoeirada retinha a imagem que, assim, era exibida para a Av. 8N como uma tela de efeito fantasmagórico e translúcido que em composição dialogava com a intervenção em lambe-lambe da ação #1.

#3 – Instalação de letreiro neon rosa Mientras Bailamos, de dimensões 1,5×0,5m, ativado todas as noites de 03 a 19 de dezembro. O circuito de neon foi afixado no lado esquerdo da fechada, na varanda suspensa e um pouco recuada, de paredes brancas e molduras de estilo colonial típicas da região, área que dava acesso à porta principal da casa, ainda não recoberta nem pela ação #1 nem #2. O reflexo do neon nas paredes brancas da varanda criava uma aconchegante “zona rosa” na porta de entrada de La Resi. Em composição, as ações #1, #2 e #3 sugeriam jogos missivos entre imagem coreográfica, palavras e urbe, marcando combinações de consignas-motim em toda a série: mientras bailamos, ¡no dispares!, don’t shoot!, não atire!

#4 – Circuito de video-instalações, aberto à visitação dentro de La Resi, no contexto de mostra Open Studio do lugar a dudas, na noite de 14 de dezembro de 2019. O circuito era composto de: a) Videoinstalação I, sem título (7’4’’) – perspectivas 1 e 2– Nesse segundo momento, a videoinstalação I retorna agora agregando a ativação de uma nova perspectiva vista de dentro do quarto; b) Videoinstalação II, sem título (9’00’’) Composição de dois televisores de tubo de raios catódicos 20” que exibem juntos uma novela insossa, embalada por clássicos da bossa nova em 8bit e áudios de diálogos banais com a polícia caleña; c) Videoinstalação III, sem título (24’21’’)duas telas de computador posicionadas uma de frente para a outra, em dois cubos distanciados em 2,5m, um cubo baixo e outro alto, fazendo menção, outra vez, às perspectivas de casa e prédio. As telas exibem duas trilhas de vídeos, que, pelos jogos de composição de peças e remixação de imagens (algumas de arquivos pessoais do artista e outras hackeadas da internet) sugerem complementariedades, oposições, espelhamentos, respostas, desvios e derivações. Nos vídeos, disputas, memórias e práticas inexcorporadas da dança ao político e do político à dança que performam o fator ‘neo’ nas Américas; d) Instalação/cenografia, sem título – fotografia digital, iPad, 34 projéteis de chumbo (resíduos), mesa, cadeira e luminária. A foto exibida no iPad é a imagem de uma perfuração feita por uma bala perdida (de fuzil) na parede da última casa em que Sérgio Andrade morou no Rio de Janeiro antes viajar para Cali. O aparelho estava afixado na parede lateral da porta alvejada. Os furos da foto e da janela foram alinhados na mesma altura, de modo que se pudesse sugerir uma trajetória nova de disparo; uma continuidade entre furo na parede de vidro do quarto em Cali e o furo na parede de alvenaria do quarto no Rio. Os 34 balines estavam caídos logo abaixo, em cima da mesa de estudo.

#5 – A palestra-performance La coreografía del neofascismo cotidiano es miedo, ação realizada no terraço de La Resi – ponto de maior visibilidade entre casa e prédio do disparador, na noite de encerramento do projeto, no dia 14 de dezembro. O programa performativo completo da palestra-performance incluiu: fazer caipirinhas e distribuí-las aos/às que vieram; dançar e reativar memórias corporais; ler o texto Para leer mientras bailo en la terraza; e dialogar com o público. No texto, o artista apresentava discussões teóricas sobre sua pesquisa acadêmica em curso a cerca das “coreografias do medo” emergidas no contexto de ascenção do neofascismo no Brasil. Toda a ação, ao mesmo tempo, performava um gesto de coragem e solidariedade coletiva entre performer e público, expostos à mirada do disparador, com certo toque de ironia regado a muito limão, açúcar, cachaça e gelo.

Os resultados das ações de Mientras Bailamos foram expostos ao público nos dias 29 de novembro e 14 de dezembro de 2019, no contexto de mostras Open Studio do programa de residência lugar a dudas; e durante todo o mês de fevereiro de 2020, algumas de suas peças (o texto da palestra-performance e as vídeo-instalações I e III) foram exibidas nas galerias La Vitrina El Ensayadero da instituição.

 

Detalhes das peças

MB1 – painel lambe-lambe “no dispares don’t shoot não atire”

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Instalação de letreiro neon Mientras Bailamos.©Sérgio Andrade e Angelica Sabogal, 2019.

 

MB3 – vídeo da instalação I, sem título (7’4”)

© Sérgio Andrade, 2019.

 

MB4 – vídeos da instalação II, sem título (9’00”)

Composição de imagens da vídeo-instalação II. © Sérgio Andrade, 2020.

 

MB5 – vídeos da instalação III, sem título (24’21”)

Composição de imagens da vídeo-instalação III. © Sérgio Andrade, 2020.

Registro da exibição da vídeo-instalação III, em El ensayadero, lugar a dudas. Registro: Jacobo Osório, 2020.

 

MB6 – instalação/cenografia, sem título

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©Sérgio Andrade e Angélica Sabogal, 2019.

Composição entre buracos Rio de Janeiro / Cali. © Sérgio Andrade, 2019.


MB7 – cópia do texto da palestra-performance La coreografía del neofascismo cotidiano es miedo

Texto original Para leer mientras bailo, de Sérgio Andrade, componente da palestra-performance La coreografía del neofascismo cotidiano es miedo, em espanhol, disponível aqui (.pdf).

 

Outros vídeos de lugar a dudas 

©lugar a dudas, 2019.

©lugar a dudas, 2019.
[1] Falsos positivos é uma expressão corrente na Colômbia para se referir às execuções de civis e às execuções extrajudiciais, majoritariamente produzidas pelo programa de Seguridade Democrática, implementado pela gestão de Álvaro Uribe (2002–2010). O termo diz sobre o forjamento falso de “positivos” – termo militar designado para confirmar êxito de uma missão; números ilegítima e criminosamente produzidos pelo Estado colombiano para justificar a guerra contra as forças revolucionárias, que hoje já somam mais de 200 mil casos, segundo dados do Instituto Médico Legal (IML) do país. Política sanguinária que atinge diretamente as populações indígenas, bem como as famílias e os trabalhadores do campo que têm suas vidas constantemente ameaçadas e forçadas a condições de desplazamiento no território colombiano, acentuando a precarização e as desigualdade sociais no país.