A edição Ecologias Espaciais do programa Residências Partilhadas/LabCrítica reuniu três núcleos artísticos brasileiros interessados em investigar as conexões entre arte, performance e políticas de produção e ocupação de espaços, tendo as ecologias de cuidado comunitário como foco principal. Yara Costa & Itacoatiara-Mirim foi um dos grupos participantes.
1. Onde tudo começou…
Eu, Yara Costa, nasci em Urucurituba, cidade do estado do Amazonas – Brasil. Sou artista, casada, mãe das gêmeas Lara e Nina, estou docente no Curso de Dança da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), desde 2002. Atuo no Programa de Pós-Graduação ProfArtes a partir do convênio entre a UEA e a UFAM (Universidade Federal do Amazonas) e dirijo a Índios.com Cia de Dança, desde o ano de 2001.
Eu Cacique Luiz, hohodene Baniwa, nascido na cidade de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas – Brasil, sou Madzeero Keerada da Maloca Casa do Conhecimento, fundador da Comunidade de Itacoatiara-Mirim, localizada no km 10 da estrada de Camanaus, zona periurbana de São Gabriel da Cachoeira.
2. Yara conta:
A minha linha de pesquisa, acadêmica e artística, está relacionada com o que chamo de corpos/corpas da floresta e o estudo dos processos colonizadores e seus vestígios nas artes do corpo, pensando estratégias para a decolonização e a emancipação destes corpos via a linguagem da dança e da performance. Neste contexto, presto assessoria na elaboração de projetos culturais para a Comunidade de Itacoatiara-Mirim situada no perímetro urbano de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Conheci o cacique Luiz Laureano, de etnia hohodene Baniwa, Madzeero Keerada (mestre de cerimônias) de Itacoatiara-Mirim, em 2007, na pesquisa de campo do meu mestrado e, juntamente com o seu filho Moises Baniwa, subimos o Rio Negro até o Rio Ayari, para Pana-Panã (Baniwa, parentes do cacique Luiz). Essa viagem foi um marco na minha trajetória enquanto artista, pesquisadora e amazônida.
A colonização religiosa devastou a cultura Baniwa e o cacique Luiz vivenciou esse processo, porém, diferente de outros Baniwa convertidos, seu Luiz não nega as suas danças, músicas e costumes tradicionais, muito pelo contrário, ele percebe na sua cultura ancestral a sua força de vida e de proteção.
Em 2020, sensibilizada pela situação dos povos indígenas – agravada pela pandemia da Covid 19 – iniciei um processo de reaproximação remota, levantando campanhas solidárias e participando de editais da cultura para beneficiar a comunidade de Itacoatiara-mirim. A Lei Aldir Blanc possibilitou a elaboração do projeto “Podaali – Äwakada hiipaai ittata imaakoittakhetti” (Ritual de trocas: a terra pede silêncio), com a realização de filmes do ritual e de processos de criação das artes postais produzidas pelas famílias de Itacoatiara-Mirim e mais 7 (sete) artistas convidados. Moisés Baniwa, assessorado artisticamente por mim e pelo artista e professor-pesquisador Sergio Andrade, conduziu a execução deste projeto na comunidade, cuja produção foi lançada/enviada para diferentes lugares e pessoas do Brasil.
Itacoatiara-Mirim tem uma população de múltiplas etnias com 150 pessoas. No perímetro urbano de São Gabriel da Cachoeira, é a única comunidade que tem uma casa tradicional indígena, chamada por eles de “Casa do Conhecimento”. O Cacique Luiz reside nesta casa e realiza rituais de iniciação dos jovens indígenas, benzimentos para cura e Podáali. Enfrentam alguns problemas de território, pois a inexistência de uma lei que garanta a demarcação da área que ocupam, obriga os mesmos a conviverem com o barulho contínuo de uma usina termelétrica e com um aeroporto que construiu uma cerca, obstruindo o livre acesso às roças que os indígenas cultivaram. Ainda como consequência do funcionamento da termelétrica, o igarapé mais próximo está sendo assoreado, precarizando mais ainda o fazer tradicional dos indígenas, principalmente os mais velhos que não estão acostumados a fazer a higiene pessoal usando chuveiros para banhos, por exemplo.
A relação com Itacoatiara-mirim desdobra-se em diferentes mergulhos nas minhas próprias raízes e na grandeza da nossa Amazônia em sua diversidade, dificuldades e saberes locais. Entendo que o reconhecimento desse saber, da valorização da terra e dos povos originários é urgente e importante para o futuro da humanidade.
3. Yara Costa & Itacoatiara-Mirim em Residências Partilhadas – Ecologias Espaciais 2022
Em 2022, o apoio do Laboratório de Crítica/UFRJ, do Encontros Hemisféricos (Canadá) e do Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais e Humanidades do Canadá, potencializou a relação de trocas artísticas e culturais, resultante da amizade e respeito construídos, em mais de uma década de convivência, entre Cacique Luiz/Itacoatiara-mirim e Yara Costa/Manaus.
Durante a realização do atual projeto, os encontros ocorreram de forma remota e presencial, tanto em Itacoatiara-mirim, quanto em Manaus. Todo o recurso recebido serviu para a subsistência em Itacoatiara-mirim, a logística de viagens, a alimentação em São Gabriel da Cachoeira e em Manaus e, por fim, para a criação das artes postais (Faixa de tururi, Audioperformance e Performance Instalação), com previsão de lançamento em Setembro de 2022. O trabalho foi coordenado basicamente por Yara Costa e Cacique Luiz, e teve a colaboração de duas alunas do Curso de Dança da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Tainá Andes e Iasmine Orleans, e de Moises Baniwa (filho do Cacique Luiz) e sua esposa Vanessa, na confecção da faixa de tururi.
No dia 15 de abril de 2022, Yara Costa e Taina Andes, kokama e aluna do Curso de Bacharelado em Dança da UEA, viajaram para Itacoatiara-Mirim, permanecendo uma semana. Fizeram uma imersão na comunidade e colaboraram mais efetivamente nos preparativos da comemoração dos povos indígenas. Foram dias intensos de trabalho e reflexão sobre a vida na comunidade. Nos dias 18 e 19 de abril de 2022 – dias de luta e resistência dos povos indígenas – foram realizados jogos com zarabatana, arco e flecha, corrida com troncos e outros, como futebol e vôlei.
Ao final, todos participaram de uma cerimônia ritual de trocas, denominada Podaáli (na língua Baniwa) e Dabucuri (na língua nhengatu). Os moradores de Itacoatiara-mirim e convidados foram recebidos com comida tradicional, danças e cantos indígenas e com Caxiri, uma bebida indígena foi preparada pelo Cacique e por algumas mulheres da comunidade, conforme orienta a cultura tradicional Baniwa. Além disso, os parentes levaram artesanatos para vender aos possíveis visitantes na Casa do Conhecimento.
Em sete dias de convivência, elaboramos 6 (seis) novos projetos para serem inscritos em futuros editais do setor cultural, mostrando com isso a potência de projetos como o Residências Partilhadas que tornou esse encontro entre nós viável. Elencamos os seguintes projetos: 1) Escrita de um livro baseado nas narrativas do cacique Luiz; 2) Oficina de cerâmica com as mulheres de Itacoatiara-Mirim; 3) Oficina de confecção de instrumentos musicais de coletividade para jovens indígenas da comunidade; 4) Construção de uma pequena maloca próxima ao igarapé que corta os fundos da comunidade, distante aproximadamente 3 kms da estrada principal; 5) Confecção de Instrumentos musicais sagrados Baniwa; 6) Projeto de turismo sustentável na comunidade.
Como gatilho para se pensar a arte postal, gravamos pequenos vídeos junto à Usina Termelétrica, localizada na frente de Itacoatiara-Mirim e instalada sem consulta prévia à comunidade. Registramos movimentos entre os caminhos que ligam a usina até a Casa do Conhecimento, com a participação de algumas crianças da comunidade.
Neste processo de escuta e criação da arte postal, estamos considerando a orientação recebida durante as reuniões das Residências Partilhadas: 1) Valorização das memórias, histórias, materiais a serem considerados no processo de criação; 2) História da terra, das políticas do espaço e da comunidade; 3) Resistência e criação na pandemia da Covid 19.
No dia 25 de Abril de 2022, participamos de forma remota do Encontro Hemisférico Online “Positionality: Spatial Ecologies”. Esta apresentação coletiva dos três núcleos coordenados por Sergio Andrade agregou mais cumplicidade entre nós, mostrando a potência de cada núcleo e seus coletivos. A recepção das nossas apresentações foi bastante positiva, tanto do público presente quanto dos organizadores do evento.
Relatório de Atividades 2022 — Yara Costa & Itacoatiara-Mirim
Principais atividades desenvolvidas no Projeto Residências Partilhadas
● Participação em reuniões remotas com a coordenação do Projeto Residências Partilhadas/LabCrítica/UFRJ, colaboradores e núcleos artísticos/culturais;
● Reconhecimento das necessidades social, econômica e política de Itacoatiara-Mirim, em contato direto com o cacique Baniwa Luiz Laureano da Silva (Madzero Keerada) e o seu filho Moises Baniwa, para pensar novos projetos junto à comunidade. O objetivo principal é fornecer apoio às manifestações que valorizam as culturais tradicionais dentro da comunidade e a sua subsistência;
● Participação como organizadores e performers da semana de comemorações dos povos indígenas no Brasil (19 de abril) em Itacoatiara-Mirim – A programação contou na parte esportiva com jogos indígenas (corrida com toras; arco e flecha e zarabatana) e jogos de futebol e vôlei; e, na parte artística, com as performances: Filha da Terra (Yara Costa) e Arapuca (Taina Andes)
● Organização em 5 (cinco) pastas arquivos com uma série de áudios e vídeos narradas pelo Cacique Luiz Baniwa, classificados como: 1) Narrativas sobre a origem do mundo Baniwa; 2) Cantos Tradicionais; 3) Cantos profanos e improvisados; 4) Sons da cidade; 5) Sons da Floresta;
● A partir do projeto Podaáli: a terra pede silêncio – premiado pela Lei Aldir Blanc no edital Feliciano Lana da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Amazonas –, refletimos sobre um conjunto de práticas que estão sendo amadurecidas para fazer ecoar, com mais força, as vozes de Itacoatiara-Mirim;
● Confecção de uma faixa de 4m ou 8m de comprimento em tururi, feita por Moises Baniwa e Vanessa, com a frase: A terra pede silêncio (em Baniwa)
● Desenvolvimento do processo criativo de arte postal, resultando na construção da Audioperformance “silêncio… para continuar cantando”;
● Realização da instalação em espaços públicos (fechados) e/ou galerias de arte com os áudios coletados para a audioperformance, utilizando pequenos cestos Baniwa e uma arquitetura sonora no espaço;
A opção pelo uso do áudio como protagonista nas artes postais foi estrategicamente pensada para a transmissão via rádios indígenas regionais e nacionais, dentre outras rádios populares. Em reunião privada com Sérgio Andrade, vislumbramos ainda outras dinâmicas de envio das artes postais que estão sendo elaboradas, tais como: realizar audioperformances e registrar a condução da faixa de tururi por lugares próximos e distantes, para espaços públicos e privados, entre os núcleos, no Simpósio Hemispheric Encounters, em Toronto – Canadá.
4. Desafios que permanecem:
Desde o primeiro encontro com o Cacique Luiz Laureano e a sua comunidade, estamos pensando em como diluir e transformar os vestígios coloniais que habitam nossas terras e nossas danças para possibilitar novas lógicas na sociedade e na própria Itacoatiara-mirim. Os passos firmes e embaraçados das crianças que encontramos em Itacoatiara-Mirim, pelo desejo deles de movimento, sentimos os rios nos pés e dançamos e acreditamos no futuro mais digno para os povos indígenas. As pistas dadas por estas crianças podem ser a chave para a manutenção da resistência em Itacoatiara, nos convocam a ser a água necessária para desviar a chegada de novos ruídos naquela terra que continua pedindo silêncio. Compartilho nossa gratidão por esta rica e importante ação e oportunidade. Que surjam mais projetos como este.
Matsia!!! (Obrigado em Baniwa)
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