Hip hop, passinho e charme, essas foram as danças urbanas que serviram de inspiração para os projetos apresentados durante o Panorama na Cidade das Artes. A criação dos espetáculos se deu a partir de um convite para três coreógrafos, não necessariamente oriundos do universo da dança urbana, mas com uma linguagem que permeava esses estudos ou com trabalhos que lidavam com o corpo de uma maneira similar ao que ocorre com essas danças, para um projeto da Associação Cultural Panorama, o Entrando na dança. O projeto, realizado entre os meses de junho e setembro de 2014, selecionou jovens bailarinos para o desenvolvimento de um espetáculo explorando as linguagens da dança contemporânea e das danças urbanas. Ao final do trabalho de criação, os espetáculos foram apresentados nas Arenas cariocas. Apesar dessas danças não compartilharem os mesmos passos e rituais, elas provêm de lugares semelhantes e muitos dos seus frequentadores acabam por circular no campo desses três movimentos. São danças associadas à cultura black e a questões sociais, principalmente o hip hop e sua música: o rap.
O primeiro espetáculo apresentado foi do coreógrafo Renato Cruz, intitulado Sob rodas. O espetáculo foi repensado para o espaço da Cidade das Artes e conseguiu ocupar o espaço de forma interessante. Enquanto os interpretes se movimentavam pelo espaço, o público os seguia avidamente à espera do que estava por vir. Sob rodas utilizou o hip hop como sua inspiração, mas não se tornou um espetáculo de hip hop. O que vimos foi um pouco da história de seus intérpretes. O espetáculo mostrou como a dança faz parte da identidade e da realidade de cada um que estava se apresentando e a importância da dança no cotidiano desses indivíduos. Através das falas, podíamos perceber como o movimento hip hop é aberto a diferentes gêneros, idades e escolaridades, e não se prende ao eixo Rio – São Paulo; é um encontro de diferentes indivíduos que, juntos, participam de batalhas e disputas não só no campo da dança mas também na esfera social, seja por sua raça, gênero ou situação financeira. O espetáculo consegue traduzir a realidade dos b-boys e b-girls que estão no palco, assim como qualquer outro b-boy ou b-girl no Brasil.
Na sequência fomos convidados a assistir ao espetáculo Suave, de Alice Ripoll. A coreógrafa trabalhou com jovens que dançam o passinho, união de diferentes danças ao som do funk. O passinho não tem fórmula, é algo espontâneo que não se repete. Seus praticantes utilizam elementos do frevo, break, samba e até passos de Michael Jackson em suas coreografias, é uma união de informações que podem variar dependendo da história de vida de quem dança. Informações em abundância, a constante ruptura do movimento e a eterna novidade são percebidos ao longo do espetáculo. A narrativa é formada de fragmentos costurados de forma que percebemos o que é a história do passinho. O espetáculo tenta quebrar a divisão entre palco e plateia ao se iniciar com seus intérpretes sentados junto aos espectadores. Ao longo do espetáculo, eles retomam algumas vezes o lugar de audiência para logo subirem ao palco e performarem. Porém, é muito clara a separação entre público e palco. O passinho é um show, quando estamos assistindo percebemos a potência dos dançarinos e vemos a distinção de quem está no palco e de quem apenas é espectador. Por ser fragmentado, é mais fácil distinguir e perceber os diferentes momentos de cada trecho. São momentos que se relacionam com a realidade dos participantes dos bailes funks e moradores de comunidades. Vemos o nascer da sexualidade no palco, assim como questões relativas à violência diária nas comunidades, sofrida através de agentes do Estado ou do tráfico. Mas o que o espetáculo revela é a vontade que esses jovens têm de brilhar quando estão dançando o passinho. De certa forma, não deixa de ser um escape da dura realidade e uma busca por momentos de prazer. A fragmentação prejudica um pouco o entendimento da linha narrativa do espetáculo, contudo, é a fragmentação que o passinho performatiza, uma dança antropofágica, quase que um hipertexto da realidade desses meninos.
O último espetáculo apresentado foi Gueto (qual o ônibus que pego depois da rodoviária), de Sonia Destri Lie. Utilizando o charme como ponto de partida, o espetáculo lembra um grande baile. Um baile que não se resume ao charme. São perceptíveis elementos de bailes de rock dos anos 1960 e de swing. O espetáculo ocorreu no espaço externo da Cidade das Artes e trouxe um grande clima de celebração. Os elementos de festa estavam muito presentes no espetáculo, os intérpretes se misturavam à plateia e retornavam à sua grande festa. Assim, o Festival Panorama encerrou sua programação em consonância à sua linha curatorial, “a festa como ato político”.
Os três espetáculos mostrados na Cidade das Artes tentaram, cada um à sua maneira, mostrar um pouco de uma cultura não muito estudada na cena contemporânea – as danças urbanas. O casamento entre coreógrafos contemporâneos e bailarinos das danças urbanas se mostrou interessante e é algo que ainda merece muito estudo e trabalhos.