Uma cadeira, uma mulher, uma música antiga, algumas memórias e uma blusa listrada azul de mangas compridas estirada no chão. Ela veste a blusa.
O espetáculo Finita, de Denise Stutz, partilha, assim, um encontro com alguém – alguém que poderia ser um amigo distante ou até mesmo eu, ali sentado, um outro qualquer convidado a imaginar uma dança sem ver. Ao longo da performance, Denise Stutz aciona as memórias de uma carta enviada por sua mãe – avó de Guilherme, único neto, filho de Denise – na qual lhe dissera: “Gosto dessa portuguesa que ao invés de dizer saudade diz nostalgia”.
É em tom de nostalgia que ela dança, contando os estalos dos dedos, contando a pulsação dos seus passos e também nos contando as imagens todas que estão para irromper nesse encontro marcado. Conta “para não escutar o silêncio”, a distância abissal entre um passo e outro, uma memória e outra, ela e o público. E assim ela nos repete: “é preciso contar”.
A dança de Denise parece uma pequena máquina de escapes. Em meio a suas memórias, a bailarina, que em sua trajetória carrega tantos encontros e experiências na dança, faz citações a espetáculos que poderiam dançar aquele estar com o outro no escuro: “um chão carregado de cravos vermelhos”, “um espaço que de repente ficasse todo preto de gente”, “um palco de pelúcia marrom” ou “um, e não 100 gestos, que fosse capaz de dizer tudo”. Denise, assim, nos convida a imaginar que sua dança poderia ser qualquer dança. Qualquer uma que celebrasse o encontro. Uma dança assombrada pelas danças de outros amigos e pela lembrança da loja de discos que não está mais na Barata Ribeiro com Santa Clara, no bairro de Copacabana – a qual eu nunca conheci, pois, quando me mudei para o Rio, ela já não estava mais lá.
Mesmo sem ter vivido aquelas memórias de Denise, sem ter assistido a Bagdad Café, sem ser personagem de quase nenhuma daquelas cenas citadas, em algum momento fui capturado e convocado a dançar com ela. Seja por memória individual ou coletiva, quem dança com Denise é convidado a pensar no singular encontro que é estar ali. Sim, é certo que assim o é toda dança: singular. Mas, ao nos ativar tantas imagens que nunca se completam na agoridade de sua performance, Finita se coloca como uma máquina espectral de fazer des-aparecer danças tão outras (dos outros) que me fez crer, por instantes, que poderíamos não estar ali nem eu nem aquelas coisas invocadas. Mas eu estava e aqueles fantasmas todos também. Disso, a contingência criada por Finita não me deixava esquecer.
[…]
Após o espetáculo, eu não consegui falar muito com Denise. Não sabia o que tinha que dizer. Afinal, o que se tem a dizer a alguém que nos conta nostalgias tão suas? O que dizer diante das perdas de alguém ou diante do que passou? Seria uma dança, uma carta, uma biografia, a perda?
Assisti Finita na tarde do dia 25 de outubro de 2013, no Festival Panorama, durante a sessão para o Programa Educativo do Festival, na sala acústica da Cidade das Artes (RJ). Era a estreia do Festival, para poucos. A plateia estava composta de uma série de jovens da Rede Municipal de Educação do Rio, e entre eles estavam alguns alunos da Escola Estadual Dr. Alberto Sabin que tinham algum grau de surdez. Como boa parte da dança era falada, ao lado, no canto esquerdo do palco, uma intérprete de Libras traduzia as palavras de Denise. Aqueles que assistiam à intérprete de libras traduzindo as “contagens” e “contações” de Denise não conseguiam ver, ao mesmo tempo, os outros gestos rascunhados pela bailarina que dançava enquanto falava. Olhar tradução em Libras (à esquerda, quase na penumbra), olhar a bailarina (à direita). Lá e cá, entre elas, outra vez, aquele vazio, o qual Denise disse preferir encher de contagens para não escutar o silêncio — que nunca foi ausência de som nem de sentido.
[Quais trilhas sonoras tocam quando você se sente só?]
Na saída da sala acústica, alguns participantes do Laboratório de Crítica iniciaram uma discussão sobre a contingência daquela tradução que, em algum momento, criava uma hierarquia entre o som que se falava e o corpo que se movia no espaço. Mas não seria “próprio” da nostalgia tal improbidade ou impropriedade, perda ou rapto, parasitologia ou assombro? No encontro com o outro, não estaríamos desde sempre todos surdos? As ruínas de pensamento — memórias — não são esse gap espaço-temporal que não nos deixa nunca viver plenamente a agoridade, mesmo que essa agoridade seja uma dança? Essa não seria a dança mesma, a coisa acionada por Denise Stutz naquela tarde?
Talvez porque essas perguntas todas me roubavam a atenção enquanto [eu] [ela] dançava foi que, no corredor, após o fim de Finita, momento que ao mesmo tempo era intervalo entre uma performance e outra da programação do Festival, ao reencontrar Denise, não soube o que lhe dizer [e esse lhe pode ser transferido a você que lê agora].
[Não soube o que lhe dizer, repito.]
Engraçado que durante a apresentação de Finita, algumas poucas horas antes desse reencontro no corredor, ela veio até mim, sentou numa cadeira vazia na plateia, logo à minha frente, e me perguntou se aquela dança que estava para acontecer não poderia ser como uma das tantas danças que vi nos palcos cariocas nos últimos dois anos. Melhor, ela não me disse diretamente quais danças eram essas, mas, pelas imagens em ruínas que me foram acionadas quando interpelado, sem titubear lhe acenei a cabeça dizendo sim. Sem demora, pensei que naquele palco vazio, talvez, poderia tomar lugar uma dança de Lia Rodrigues, de Marcelo Evelin, de Marcela Levi, de Dani Lima ou minha. Talvez, poderiam aparecer também os cravos vermelhos de Pina Bausch, os quais só vi em vídeo pela Internet. E, ainda, talvez, poderiam insurgir outras tantas possibilidades que não consegui capturar enquanto dançava. Pensei sem pensar: “Sim, sim, Denise”. Poderia vir qualquer dança, desde que fosse um encontro como esse que é singular. Uma dança pode sempre ser qualquer outra, desde que ainda singular. Uma dança pode arquivar outras danças sendo ainda singular.
Mas no corredor, longe do palco, assombrado por todas essas danças, quando reencontrei aquela mulher, que nada me perguntara sobre seu solo naquele momento, somente a abracei, dei-lhe um beijo desarranjado e disse, sorrindo: “finita”.
Finita aciona a acontecimentalidade das memórias que escapam, das distâncias que de tão longe nos perseguem lado a lado. Há buracos. As coisas faltam e as mães, as mulheres finitas, também… A dança faz [a] falta. O fim, como o fim de um espetáculo, também faz falta. O som que tocava numa das cenas, inclusive, falhou. Engasgo[u].
Finita me faz lembrar, talvez, que as coisas quando faltam podem engasgar e que um certo mutismo, mesmo cheio de “contagens” e “contações”, é incondicional.
Ao seu comando, apagaram-se as luzes da plateia, acenderam-se as luzes do palco. E nele o público foi convidado a imaginar-dançar a dança, como aquele que tenta colar e saltar as ruínas todas lançadas por um corpo ao som da única música que, em silêncio, se repetiu em todo o espetáculo.
[Antes de começar a escrever este texto, me perguntei em qual tom deveria encená-lo. Como quando se escreve uma carta para alguém distante, alhures, e não se sabe se e como ela vai chegar, mas ainda há o envio. Ou, ainda, com a dúvida que se faz presente quando se escreve para o outro que, mesmo estando ao meu lado agora enquanto escrevo, permaneceria como uma cadeira vazia na mesma fileira da plateia de um teatro. Esse “ele”, “ela” ou “it” a que envio nunca estará aí plenamente junto e acordado — essa palavra tão dupla que ao mesmo tempo remete ao despertar e ao contrato que se faz com alguém, no qual se assina e se diz: “está acordado entre as partes”. Como se assina um contrato estando incondicionalmente longe? […] Certamente inventei outros parasitas, traças, que não retornam aos escritos de Finita. Você poderia ouvir as palavras que eu digo? Espero que não. Espero que estejamos sempre surdos e que precisemos das traduções infinitas, com ou sem libras, que nos criam ainda mais buracos e nostalgias. Talvez seja esse um dos tons que aqui tentei assinar: um perdão pela falta que se fez naquele reencontro da tarde de sábado].
Assino.
Notas
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Outra versão comentada desse texto crítico foi publicada na Tese de Doutorado do autor. Cf. ANDRADE, Sérgio Pereira. Quando o pensamento vem dançando, quando a soberania treme – evento por vir, democracia por vir, razão por vir. Tese de Doutorado – Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Rio de Janeiro, 2016, s. 6.2 Uma quase-carta. Porque não pude falar: pensando a disjunção da memória em Finita, de Denise Stutz, p. 172-177.
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Todas essas citações são as que de alguma forma consegui rastrear com outras danças já incorporadas na minha experiência/experimentação com outras obras. São rastros diversos: Cravos, de Pina Bausch (ALE); de repente fica tudo preto de gente, de Marcelo Evelin (BRA); Natureza monstruosa, de Marcela Levi e Lucía Russo (BRA/ARG); 100 gestos, de Dani Lima (BRA).
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Nesse dia de encontro, nos diálogos pós-espetáculo, estavam: Alexandre Wilson (Xandu), Alface Cátia Leitão, Lígia Tourinho, Mariana Bittencourt, Mariana Callegario, Neidimar Santos, Silvia Chalub e eu.
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A música é a suíte nº 14 d’O Quebra Nozes, de Tchaikovsky, que ambienta o momento do grand pas de deux do balé. Denise dança com o público e faz o público dançar assombrado pelos arquivos da memória histórica da dança, fazendo uma inversão dos lugares de se dar a dança: “nesse momento, a luz da plateia se apaga” – diz ela conduzindo com os braços o fad out das luzes do palco, aonde ela está sentada; anuncia seguida: “a cortina abre e o palco está todo iluminado/ todas as luzes se acendem”, retornando ainda em penumbra as luzes sob nossas cabeças. Dançamos aí com mais de um espectro, justamente, assombrados por uma música composta para um “pas-de-deux” (passo de dois).