Uma dança como uma gargalhada

Entrando numa cena negra e nua, uma única janela de luz inclinada provoca um desequilíbrio no espaço. Desequilíbrio este que vai tomando diferentes formas e contagiando o espectador ao longo da peça. Um rugido acompanha a entrada do público, uma espécie de som articular. Um corpo habita o espaço, com uma série de gestos repetitivos, agressivos, secos e alguns objetos detalhadamente organizados em volta, sugerindo o desenvolvimento da peça.

O espaço da cena multiplica-se e transforma-se pela luz e pelas alterações de presença do único corpo que nos guia na ação, viajando por cada um dos quadros da estrutura coreográfica que compõem a linha dramatúrgica. Um corpo que dialoga com provocação e humor de nuances autobiográficas, políticas e poéticas.

Experimenta inicialmente uma linguagem mais constrangida, um corpo em queda, uma desarticulação no movimento que nos desperta a atenção para o seu som residual. Quando primeiramente lhe vemos a cara é numa tentativa deste indivíduo aprofundar e deformar as suas feições, rasgar este corpo e os seus limites. O rugido regressa e parece vir do interior do corpo, em ebulição, ameaçando expandir-se a qualquer momento.

A densidade da presença inicial, a tensão e o tempo da ação não deixam passar em branco as transições e o momento de preparação de cada quadro para ambos, público e performer. Esta estrutura de composição torna-se confortável, sem no entanto deixar de ser surpreendente pela expectativa do conteúdo de cada quadro.

O processo de pesquisa de Hyenna – não deforma, não tem cheiro, não solta as tiras surgiu na Suíça, quando, embrenhado num outro processo criativo, Tuca Pinheiro se vê também inquietado por questões antropofágicas e por tropicalismos. Numa cidade suíça, confrontado com a limpeza e organização do local, tão distintos do seu Brasil, dá-se conta de que as mesmas características estão presentes nas danças por ele produzidas até então. E aí começa essa vontade de dissecar, questionar e reconstruir a origem e o resultado desses hábitos viventes e dançantes.

Num dos primeiros quadros, mais discursivo, em tom sarcástico, do alto da sua exótica brasilidade, que nos é dada a conhecer mais pelo seu discurso do que pela sua imagem, explora um certo fascínio pela belle époque, pela cultura francófona. Dirigindo-se à plateia sempre em francês, explora esse fascínio que se entranha na dança e que promove credibilidade ou não a um bailarino/artista, dependendo de seu grau de familiaridade com essa cultura. Tuca questiona assim a aparente necessidade de se manter um qualquer vínculo de admiração ou aproximação àquela que foi e tem sido uma grande potência da dança teatral ocidental. De que forma a manifestação desse conhecimento, por parte de quem faz dança hoje, do lado de cá do Oceano (entenda-se Brasil), legitima ou não a sua prática, a sua estética, as suas questões? Ao longo do solo, este conflito está bem presente: querer assumir uma identidade, reconhecendo todas as suas influências sem, no entanto, lhes fazer uma vênia constante, sem apoiar nelas a própria existência. Um manifesto de vontade de se libertar das rédeas de influências europeias na criação e legitimação do seu trabalho e de toda uma geração de criadores e intérpretes. Transformar e apropriar-se das referências, influências e histórias inscritas no corpo para a criação de um novo objeto, que fala por si, pelo seu tempo e pela realidade que o envolve. Nesta espécie de fuga a um devoramento que já aconteceu, um devoramento cultural, identitário, religioso, um devoramento com séculos de duração, Hyenna abre as portas desta questão para além da dança. “Tupi, or not tupi” essa é a questão, conforme o devoramento de Shakespeare por Oswald de Andrade. Que lugar é este de uma sociedade que cresceu invadida, entre o constrangimento católico e o carnaval de corpos e vontades? E que brasilidade é essa das criações contemporâneas de dança? Será que ainda cheiram a imperialismo?

Sem medo da palavra e das suas afirmações, ficciona uma metodologia de pesquisa e criação que serve bem às suas questões e lhe permite ironicamente colocar o dedo na ferida, tanto de quem dança como de quem a olha, questionando os atuais modos de fazê-la. Constrói uma cena apoiada naquela que parece ser uma exigência das criações contemporâneas: essa acreditação da arte pela ciência, pela pesquisa, pelo método. Abre ao público essa “falsa” pesquisa, explicando detalhadamente o seu processo investigativo e respectivas conclusões. Critica assim as composições de caráter mais intelectual, que obrigam a um prévio conhecimento sobre determinados assuntos, necessários à compreensão e ao acesso às respectivas peças. Parece querer uma abordagem mais humana, mais poética, mais da carne e do estado de ser.

Aspectos autobiográficos vêm à tona em vários momentos. Tem história no corpo, uma história da sua vida e uma história da sua dança, que não estarão assim tão distantes. Esta constatação nos empurra a uma reflexão sobre a forma como estas e outras histórias de vida, com todos os seus desvios, podem ser corpo de criação para um objeto artístico. Que metodologias de apropriação, questionamento do real e transferência para o espaço da cena nos são apresentados, filtrando e mascarando a informação de modo a que esta sirva ao que se pretende comunicar no momento? Com Hyenna, Tuca parece viajar entre a sutileza e o exagero, num jogo de sobreposição entre a ficção e o real, os seus desejos e as suas memórias, as suas frustrações e os seus orgulhos. De modo um tanto caricatural, traz consigo questões de identidade de gênero e identidade sexual. Alterna entre uma postura mais serena e outra que impõe uma maior comicidade. Sob a sua premissa metodológica de “liberar e libertar as articulações”, onde se incluem “a arte, o cu e a ação”, experimenta um corpo mais funcional, que serve ao seu discurso. Numa interação demonstrativa, usa e abusa do próprio corpo, expondo seu lado ridículo e simultaneamente dramático, deixando a nu a sua vulnerabilidade.

Artaud diz ter um corpo que “experimenta o mundo e vomita realidade”. Para além desse corpo, Tuca apresenta-nos outro: um que se experimenta a si próprio e não vomita nada, porque tudo em si é orgânico. Um corpo que se devora e que, com rastos de “hyena”, ignora os limites convencionais de higiene, provocando uma agitação na plateia, com direito a alguns rugidos e risadas de desconforto e reprovação. Um corpo que quer poder tudo sem pudor. Um corpo que diretamente de sua bunda nos pergunta constantemente: “Por quê?”. Por quê? Por quê? Por quê? Por que este corpo, por que esta história? Por que este espaço, por que esta escolha? Por que estes brilhos? Por que estes animais? Por que agora? E por que não? Uma chamada de atenção para o momento presente. Um alerta. Um corpo onde se mistura tudo, o humano e o animalesco. O formal, quase virtuoso, e o absurdo. Um corpo carregado de simbolismos, pleno de sentidos e referências, e um corpo abstrato, tensionado pelas sensações. Um corpo de bofe, de bicha e de bailarino. Um pássaro. Um corpo migratório e colonial. Um corpo onde se pode vislumbrar “o índio vestido de senador do império”, também de Oswald. Um corpo que contém as luzes e as sombras, a Natureza. Uma personagem real que mastiga a piada, o nojo, a metodologia e a História. Da história coletiva à individual, ou vice-versa, porque ser particular é também ser universal.

Esse corpo quer pagode, canta uma vida desgraçada e desaparece no fim, no meio dos restos, deixando um rasto. Na intimidade da cena, a sua ausência é sentida. Mas, olhando de longe, neste paradoxo de distâncias, na cidade maravilhosa do “descomprometimento”, na cidade dos desaparecimentos, onde sobra tanta gente, pouco se sente a falta de alguém.

Da figura da hyena ficamos também com um riso sarcástico, um riso maldoso e triste, mas que não deixa de ser um riso, um riso de troça e simultânea identificação, um riso de saudade. Uma certa imoralidade constrangedora, uma corrupção de hábitos sujos. Uma gargalhada reflexiva sobre como esta forma de expor a sua dança provoca algum tipo de deslocamento. Como as suas questões agitam, chocam e desdobram questões que borbulham no mundo em que vivemos.

 


NOTA
  1. ANDRADE, Oswaldo. Manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, Ano 1, nº. 1, maio de 1928.