Já não és mais capaz de fazer o que mais queres: criar sobre si mesmo. Isso é o que mais queres, esse é seu ardente desejo.
Em seu Ser crânio (2009), Georges Didi-Huberman disserta sobre a poesia escultórica de Giuseppe Penone. Para ambos, “o artista é um inventor de lugares”, ou, ainda, aquele que, ao retirar nossos corpos do espaço normativo, cria a partir dele um novo lugar. O tango em Vacío/ Solo podemos mirar los ojos de uma persona a la vez, da Companía de Danza Periféricom com direção de Federica Folco, acontece muito próximo de nós, quase nos atingindo fisicamente. Essa iminência hipnotiza e nos expõe para nós mesmos de forma bastante visceral, permitindo que nos reconheçamos como o corpo paradoxal de José Gil e, por conseguinte, quem sabe, que criemos um espaço outro. Corpo-espaço, de sujeito interior e exterior ao mesmo tempo. Sujeito viscoso que se fabrica com a experiência externa quando tornada interna. Corpo que se apropria da construção do outro para construção de seu self pós-estruturalista. Corporeidade em pulsão no agora da potência de ser. O ardente desejo.
Um corpo contemporâneo com memória da matéria e consciente das reminiscências reconhecidas como presente-futuro, num espaço tempo no qual não existe ontem ou amanhã. Um agora-neste-momento eterno. Um corpo que deseja afetar o outro pela necessidade primeira e última de ser afetado por si e pelo outro. Um ser que reconhece que vivemos em constante performatividade e que busca não só a fuga, mas também o encontro-descoberta a partir de performances.
O caráter catártico é reiterado pela utilização de figurino composto por roupas bastante comuns, passíveis de fácil identificação. A falta de cenário implica a dualidade não lugar/ qualquer lugar, facilitada pela iluminação discreta e pontual. Os sons ficam por conta de uma guitarra modificada e explorada em seus ruídos e não ruídos, além da participação integral do público e seu movimentar. O rugido da cadeira, o espernear de um bebê, um espirro, uma tosse, a nossa respiração. Logo, o exterior tornado interior e simultaneamente expelido de volta – não para um mesmo lugar, mas para um lugar outro já transformado e ainda por transformar-se.
A melancolia do tango é substituída pelo desespero do gesto momentâneo. A sensualidade mascarada dá lugar ao erotismo efêmero. Os pequenos acontecimentos são amplificados e as subjetividades, interpenetradas. Os gestos se mostram singulares e dependentes de conforto e do confronto. A beleza e crueza do estado nascente do toque irrompem o presente e nos choca, obrigando-nos a decidir entre entrar no jogo ou fugir dele. A fuga colide com a permanência. O olhar com a presença. A corporeidade com a ausência.
A fuga e a desistência me parecem muito presentes em Vacío. O encontro, quando perto de se tornar insustentável, dá espaço à deserção, quando, no entanto, penso que a persistência levaria à explosão e à consequente transformação. Ambas – explosão e transformação – evitadas, visto que o medo é tão intenso quanto o tesão. A atração que o outro provoca é proporcional ao temor de sua possível indiferença e/ou renúncia. A insistência não ganha corpo aqui, mas a multiplicidade de toques e encontros. Tema do qual o cidadão urbano contemporâneo em urgência pelo outro, mas esquivo para consigo, não pode mais se evadir. Os bailarinos repetem: mesmo no desespero da agitação, só é possível olhar nos olhos de uma pessoa por vez. A insistência – ou a desistência – nos decreta frágeis, adjetivo que nos é ensinado desde cedo. Mas o que é a fragilidade senão o nosso pedido por cuidado, carinho, amor? A necessidade por atenção. A necessidade de ser percebido. O que realmente queremos quando tocamos o outro? Talvez não estejamos em busca apenas por outrem, mas também – e principalmente – em uma busca interna, velada e torturante por nós mesmos – ainda em construção.
Ao tentar agenciar desejos desse corpo paradoxal: é possível ignorar a presença humana? O que significa tocar o outro? E repudiar o toque? Quando tocamos o outro incitamos a resposta, mas não a impomos. O que significa não ser tocado de volta? É possível manter uma obra em obrar, aberta a novas pulsões? Um riso, um choro, um toque inesperado. O que é o vazio senão todos os lugares possíveis? É possível transformar o vazio da carne em terra fértil do devir? A carne é profundidade. Somos capazes de criar constantemente sobre nós mesmos? Somos capazes de abrir tudo que é carne para a vertigem de ser carne? Ardente desejo.
No prólogo de Movimento total (2001), José Gil traz uma fala de Merce Cunningham: “Perante o vazio, (o bailarino) está só, de uma solidão que o arranca para fora de si. Está só e fora de si. O seu gesto vai à direção dos outros corpos. Como dançar esse gesto? Como fazer? Fazendo-o”. Por sua vez, Giuseppe Penone nos diz: “para se esculpir realmente a pedra, há de ser rio”. Vacío/ Solo podemos mirar los ojos de uma persona a la vez nos leva a reconhecermos a pedra, cujo grito não tem altura. Vacío é frottage; capta os traços mais antigos e menos visíveis, faz visíveis fósseis de gestos e desenvolve sua intimidade. Ao mesmo tempo em que expõe a fugacidade da vida, implica ser necessário um tempo outro, no qual nos olhamos mais longamente. Ainda não é rio, contudo. Talvez essa seja a nossa deixa. Já sabemos que o estado nascente é vida e morte concomitantemente. Só falta criarmo-nos, agora e mais uma vez, rio!
NOTAS
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Ibidem. p. 29.
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PENONE Apud: DIDI-HUBERMAN, Georges. Ser Crânio: lugar, contato, pensamento, escultura. Belo Horizonte: C/Arte, 2009. p. 46.