Em sua crônica “O vestido branco”, de 1967, Clarice Lispector pergunta: “Grossura é pureza? Uma coisa sei: amor, por mais violento, é.” Lembrei-me de Clarice ao ver Cesena na tarde do dia 27 de outubro de 2013. A posição privilegiada em que me encontrava na plateia do imenso teatro da Cidade das Artes fez-me assistir ao espetáculo de forma intimista, desde a primeira cena, quando um bailarino, nu, “vestido” apenas de tênis, entra correndo e se põe exatamente em frente à minha poltrona, centralizado e na beira do imenso palco.
O ato era em si uma espécie de violência, que em mim se afigurou como de grande beleza; para o casal da fileira da frente, algo insuportável. A mesma cena que me atraia, impelia-o para fora do teatro. Víamos, nós os privilegiados das duas primeiras fileiras, todo o percurso que a voz fazia por dentro de seu corpo nu antes de explodir em um berro lancinante, que ecoava pelo imenso cenário, em uma escuridão quase total.
A partir daquele momento, seguiu-se a comprovação de que o que estava em cena eram escolhas que chegavam até a mim pela via de uma “emoção racional”. Explico: refiro-me àquela emoção que não faz cisão entre o que vê e o que sente enquanto vê, é quando o espetáculo nos enlaça.
As luzes apagadas – apenas uma geral na boca de cena – desde o início do espetáculo devem ter contribuído para essa fusão. O palco sem coxia levava-me constantemente para pequenos detalhes; quando um bailarino amarrava o tênis, colocava o cabelo para trás ou falava com um companheiro. Por tudo ser como um convite para ver o acontecimento em si, um pequeno detalhe, assistido talvez apenas pelos privilegiados das primeiras fileiras, chocou-me pela imensa beleza: na parte superior do teatro a porta de um camarim se abre e a luz que estava ali dentro invade o breu do palco. Essa cena durou apenas alguns segundos, mas o suficiente para que eu visse nela uma pintura, sem pensar muito, algo que me lembrou Edward Hopper, tal o encontro entre a violência e a doçura da contemplação, algo de extrema delicadeza.