“Primeiro vislumbre: vejo-me enredada às palavras. A condução da fala, do texto e das letras fabricam sentidos para o que encontro no mundo, no encontro com o mundo. Criar documentos que reivindiquem a subjetividade em torno das experiências vividas surge como uma necessidade, uma autodefesa contra a passagem cáustica do tempo, a fragilidade da memória e o acontecimento fugaz da dança. Com os pés fincados na língua (língua-órgão, língua-estrutura, língua portuguesa, gramática, verbo, terminologia, conceito e semântica) dou vida às impressões, tateio formas de reconhecimento e aproximação com as obras… Frente ao evento da dança, no entanto, como atravessar o território da língua e dar conta da sua apreensão e factibilidade?”
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Em 2015, o Festival Panorama teve como proposta curatorial obras que articulavam múltiplas perspectivas de dramaturgia situadas em aproximações e dicotomias entre corpo e palavra, movimento e texto, e os diálogos possíveis a partir desse encontro. Dois trabalhos, de maneira especial, propunham diferentes relações com o discurso oral. O que podemos dizer do Pierre, de Vera Mantero, e Entre ver, de Denise Stutz, nos convocam, de maneiras bem distintas, a repensar as noções de dança e do uso cênico do som/texto.
O ponto de convergência entre os dois espetáculos e o diálogo com a curadoria perpassa, inevitavelmente, por algumas das concepções possíveis da palavra “sentido”: discursiva, filosófica e sensorial. Se “todos os seres humanos naturalmente desejam o conhecimento”, é pelos sentidos que começa esta busca, em especial, o sentido da visão. Para Aristóteles, pai da poética ocidental, “preferimos a visão – no geral – a todos os demais sentidos, isto porque de todos os sentidos, é a visão o que melhor contribui para o nosso conhecimento das coisas e revela uma multiplicidade de distinções.”
Destarte, retomamos a discussão proposta no Laboratório de Crítica no festival e em um dos encontros com a participação das duas artistas, no qual se debateu o uso dos verbos “dizer” e “ver” e suas correlações com a percepção/recepção de determinada obra ou discurso. “Ver”, na língua falada, também manifesta a compreensão de algo. “Estou vendo tudo”, “viu o que quis dizer?” são expressões cotidianas. Assim: VER – ENTENDER – COMPREENDER – CAPTURAR. Por conseguinte, o dizer cria sentido, logo: DIZER – ELUCIDAR-ESCLARECER – CONCEITUAR. É à luz dessa premissa que se dá meu encontro com os dois trabalhos.
O que podemos dizer do Pierre, solo apresentado no Parque Lage, sob o cair das luzes no fim da tarde, utiliza o áudio de uma palestra do filósofo Gilles Deleuze sobre Baruch Espinoza. Todo em francês, o som que saía dos alto falantes soava aos não francófonos como um emaranhado de sílabas sendo proferidas por um homem, sem necessariamente serem entendidas no seu conteúdo discursivo, sem “dizer alguma coisa” aos que desconhecem a língua. Uma tradução do texto foi entregue aos espectadores, mas, como não seria possível fazer uma leitura simultânea do texto enquanto acontecia o solo, naquele momento o que saía pelos alto falantes não tinha qualquer ligação “descritiva” ou “representativa” com a movimentação. O que se “ouvia” não se relacionava com o que se “via”.
Juntos, porém, movimento e palavra dançavam, interagiam como dois dispositivos potentes. Apesar desta “não compreensão” através do que era verbalizado, o ritmo da fala, o tom, as pausas, a construção estético-fonética, a melodia da transmissão e a própria sonoridade da voz de Deleuze “dialogavam”, ainda que não diretamente, com o que se “via” na dança de Vera. Estranhamente, plasmavam-se de alguma forma. Com repetições de movimentos casados, propositais ou não, com partes do discurso; ou mesmo caretas e gestos cômicos enquanto era possível distinguir risadas ou um tom bem-humorado na voz do locutor.
Aqui, vale lembrar que uma das questões mais importantes formuladas por Espinoza foi, justamente, sobre o que pode o corpo quando dissociado da nossa capacidade mental e intelectual para movê-lo e interpretá-lo. “O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo – exclusivamente pelas leis da natureza enquanto considerada apenas corporalmente, sem que seja determinado pela mente – pode e o que não pode fazer”.
O corpo de Vera ocupa-se do espaço enquanto Deleuze utiliza uma metáfora para narrar a vida ordinária de Pierre, indivíduo com apetites mundanos, que permanece no primeiro conhecimento, aquele que podemos chamar de senso comum. Para sair deste lugar, “é preciso um pouco de filosofia”, narra Deleuze, enquanto Vera movimenta-se em uma espécie de dança livre, uma improvisação sobre a dramaturgia de seu corpo há muito já inscrita, topando e cedendo aos encontros com o inesperado e o acaso, como uma árvore, uma criança, os galhos na grama, “conhecendo” assim, a cada apresentação, novas formas, novos caminhos. Um percurso epistemológico dançado, entremeado à filosofia do texto alardeado pelos alto-falantes.
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Entrever: ver indistinta ou rapidamente, distinguir mal. Nada nos era dado a ver, a priori, na estreia do novo espetáculo de Denise Stutz, Entre ver. O palco italiano do teatro do Centro Cultural Banco do Brasil (RJ), escuro e vazio, nos colocava a todos, imediatamente, na tradicional posição de hierarquia em que se encontram os espectadores e os artistas neste tipo de estrutura cênica: o palco é o lugar de quem realiza a obra, a plateia, de quem “apenas” assiste.
De saída, Denise borra essas fronteiras junto ao público: do fundo do teatro, sua voz se projeta pelo espaço. Com as luzes ainda acesas, a artista nos convida a chegar com calma e esperar. Depois de alguns minutos, fica clara a proposta de deslocar o palco para outro lugar. Mas que lugar seria este?
Narrando o que seriam as suas memórias da infância, da família, de processos criativos, Denise propunha uma coreografia desenhada por estas imagens. Aos espectadores, ficava o encargo de recriar neste outro espaço, o da imaginação, as propostas da artista ou mesmo um novo espetáculo inteiramente seu, a partir do que era narrado. Como não era possível recriar em cada um exatamente as imagens que a artista trazia, acontecia naturalmente de, através destas lembranças, criarmos nós também outras memórias, inventadas totalmente, ou uma colagem a partir das nossas próprias experiências.
Longe do palco, Denise usava a palavra para se aproximar dos espectadores, para sugerir-lhes imagens e movimentos. Se não havia o que VER, éramos espectadores ou meros ouvintes de uma contação de histórias? Acredito que os que aceitaram o convite puderam vivenciar uma coautoria do espetáculo como parte essencial do “ato criador”, já que depende o artista do público para este coeficiente artístico, pois, como propôs Marcel Duchamp, o ato criador “não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador”.
Se não havia o corpo de Denise em dança, havia luz, o outro, a música. E não seriam estes também corpos? No momento final do espetáculo, quando se inicia uma canção de Caetano Veloso – It’s a long way – e fica clara a relação com todo o percurso recente da artista e suas tentativas de autocrítica, desvelamento da sua posição enquanto artista e proposição de novas formas, vide seus dois últimos trabalhos, é o movimento do público que revela, acidentalmente, uma coreografia. Enquanto uns cantarolam e arriscam pequenos gestos e outros rodam a cabeça à procura de Denise, a artista subitamente se levanta e atravessa a plateia, atravessa o palco num clarão de luz e desaparece. Atravessa-nos. Como um fantasma da lembrança, Denise aparece, deixa-se entrever por breves segundos sem olhar para trás, para nunca mais voltar. Em poucos segundos, preenche o palco, agora sim com um corpo humano, para desaparecer em seguida, deixando um rastro espectral. Usando uma roupa semelhante ao de seu espetáculo anterior, Finita, a artista encerra a experiência sem dissolver a fronteira entre lembrança e imagem, e reafirma a fricção entre as noções de temporalidade e espaço. Era memória ou presente?
NOTAS
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ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: EDIPRO, 2012. p. 41.
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Ibidem.
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ESPINOZA, Baruch. Ética. Livro III. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p. 101.
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DUCHAMP, Marcel. O ato criador. 1965. Disponível em: <https://asno.files.wordpress.com/2009/06/duchamp.pdf>. Acesso em: 7 jul. 2017.
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A artista criou dois solos antes de Entre ver (2015): 3 solos em 1 tempo (2008) e Finita (2013). No primeiro, Stutz trabalhava a memória da dança a partir de três solos anteriores e trabalhos de outros artistas. Em Finita, a criação partiu de uma carta da mãe da artista para falar de temas como a ausência e a perda.