Manhã nublada. Sexta-feira. Eu nunca antes havia acordado tão cedo para ir a um espetáculo de dança. Crianças, muitas crianças, um Teatro Carlos Gomes completamente tomado por crianças de escolas públicas do Rio de Janeiro. Os minutos que antecedem o início da peça são de euforia. Vozes, gritos, corpos agitados, forças pululantes, sorrisos. Adultos explicam às crianças coisas sobre o silêncio, coisas sobre a ritualística que envolve a comunhão com o que acontecerá em cena logo mais. Me questiono sobre essas explicações, fico imaginando como seria se nenhum adulto direcionasse essa experiência e se as crianças simplesmente entrassem no espetáculo e se deixassem levar pelos acontecimentos em cena. Essa imagem me parece muito fértil, vou longe na imaginação, mas me seguro, há espetáculos e espetáculos, ocasiões e ocasiões, o palco italiano nunca deixará de guardar os mais potentes segredos e eu ainda não sabia ao certo o que aconteceria naquele palco, naquela manhã.
As crianças entram em fila. Várias filas, várias idades, vários tamanhos. Acompanho essa entrada já completamente contagiado, completamente brincante. Vejo euforia, desconfiança, timidez, contravenção, curiosidade, cansaço, sono, alegria. Uma ruidocracia insana de feições, afetos, olhares. O momento da fila, o momento de entrada, era o momento de marcação, momento de modulação clara entre antes e depois. Entrar em uma arena ritual como essa, com os pedidos de silêncio dos adultos, a imponência do Teatro Municipal Carlos Gomes, a organização na entrada por filas; tudo isso gerava certo desarranjo nessas crianças. Ficava claro, no rosto delas, uma vontade insaciável de tentar sorver qualquer gota de compreensão sobre o que acontecia naquele momento. Criança demais dá nisso, sinceridade à máxima potência. “Sincericídio” pré-anunciado. Algo grande está por vir.
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John Cage é uma criança. Ou melhor, John Cage é um brincante insaciável. Suas Sonatas e interlúdios para piano preparado (1946-48) dão o tom de brincadeira do espetáculo logo de cara. O silêncio das crianças já sentadas é um silêncio extremamente ruidoso, um silêncio repleto de povoamentos. Assim também é o trabalho de John Cage. Não há harmonia musical, os ruídos são a linha guia. Cage explorou ao longo de toda sua carreira o silêncio, o ruído, o imprevisto de um acontecimento. Nada mais brincante que isso. Sob essa atmosfera brincante, sob essa ruidocracia mesclada de silêncio, o piano no palco e as crianças fazendo som em suas cadeiras com suas euforias contidas, o espetáculo inicia.
Cage comparou esse seu trabalho a um caminhar pela praia a procura das conchas e búzios que nos agradam. A praia, as conchas, os búzios, a caminhada. O corpo, os afetos, a infância, o brincar, o criar. O piano de John Cage, devidamente interferido em sua mecânica, por pedaços de plástico, borracha, parafusos, nos convida a prática dessa caminhada, a essa deriva afetiva pelos sons, ruídos, ritmos que dali saem. Sinto-me bem acompanhado para entrar no jogo que o dançarino Mat Voorter se propõe a fazer no palco a partir da concepção cênica de Thomas Hauert. John Cage não só foi uma ótima escolha para o desenrolar dessa ação, foi também criador presentificado neste espetáculo.
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“Tia, o que que é aquilo??”
“É uma água-viva?”
“Acho que são seres… É um monte de seres…”
Que ser é aquele ali, parado, esquisito, informe, tentando se mexer, tentando se esquivar de algo que o cobre por inteiro? Não tem pé. Não tem cabeça. Não tem braços nem pernas. Mas se move, tenta se mexer envolto por um manto branco que parece tê-lo engolido por inteiro. As crianças também se movem, se mexem, tentam compreender o incompreensível que se move diante delas.
O estranho, o disforme, o esquisito. Um ser que se move sem nos deixar clara qualquer definição. Há uma luta corporal intensa, um embate de vida ou morte para se desvencilhar de algo que cobre por inteiro aquele corpo indefinível. A luta vai ganhando força, intensidade, as crianças acompanham o processo como torcedores acompanham seus times nos estádios de futebol. A cada movimento ressoa um “uuuuuhhhh”. Há uma eletricidade no ar, algo começa a ser visto, algo como uma nova pele, uma nova casca, um novo invólucro. O ser se debate, se move, se desvencilha de sua primeira pele e… “Aaaaaaahhh!!” Um novo ser toma forma no palco! Dessa vez um ser com pé, com cabeça, braços e pernas. Mas um ser ainda coberto por uma incompreensível pele. Pele colorida, pele feita de ar, de sopro, de ruídos. Balões, muitos balões envolvendo toda a superfície corporal daquele estranho ser.
Novamente no palco um novo ser começa uma nova dança. Dessa vez não mais de luta explícita para se desvencilhar dessa pele, mas dança que comunga com cada encontro, com cada elemento que aquela estranha pele secretava. Secreções. Trata-se sim de secreções. A fricção de tantos balões e seus ruídos secretavam miríades de coloridas afecções, fazendo com que aquela atmosfera se eletrizasse cada vez mais. As sensações estavam no ar, e a sinceridade dessa brincante plateia não deixava escapar nada, plateia e palco em comunhão, ambos secretando sensações incessantemente.
Cada movimento daquele estranho ser provocava uma nova fricção, um novo ruído, uma nova secreção. Os poros daquela estranha pele secretavam cores em movimento, cores ruidosas, cores dançantes, cores brincantes. A eletrostática dos balões em fricção contaminou toda a atmosfera. Tal como a energia que fica estaticamente carregada no balão que se esfrega, o teatro se povoou da mais brincante eletricidade.
Mat Voorter em Danse étoffée sur musique deguisée é uma plataforma viva e pulsante de acontecimentos e secreções de imagens-sensações. Territórios indiscerníveis não cessam de ser criados a cada movimento, a cada gesto. A experiência desse corpo em ação, sua pele-prótese-balão, seus devires brincantes, evocam inclusive a figura de um palhaço. Não se trata ali estritamente de um palhaço, mas, tal como feito nas artesanias de ação do também brincante palhaço, Voorter consegue acessar com maestria as mais ínfimas frestas do sensível para de lá tirar qualquer tipo de brincadeira que valha o sorriso de uma criança (seja ela de 7 ou 97 anos).
Mas os acontecimentos em cena ganham outra dimensão a partir do momento em que outro ser entra abruptamente no palco…
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Um zepelim fantasiado de rato flutuante é lançado subitamente ao palco (não pude me furtar de criar um zepelim fantasiado de rato flutuante em minha cabeça!). Comoção geral. Estardalhaço, gritaria, risadas, crianças em êxtase se levantam da cadeira pra tentar entender melhor o que era aquele tão inesperado ser. A vida está em todos os cantos, está nas mais surpreendentes formas e forças, e nesse espetáculo, os balões ganham vida de maneira simples, quase banal, mas por isso mesmo extremamente intrigante. E a partir daí o espetáculo toma uma direção inimaginável, dando vida incessante aos mais fantásticos seres que podem povoar a criança que mora em cada um de nós.
Mat Voorter agora está acompanhado de vários seres coloridos que pairam e flutuam no ar. São seres com as mais variadas formas, tamanhos, cores e pesos. Uns flutuam com mais peso e vigor e logo vão de encontro ao chão. Outros insistem em pairar pelo palco e ficam a revelia dos encontros e dos fluxos causados pela dança de Voorter e pela música de John Cage.
“Tia, o que é aquilo?” uma das crianças pergunta. “É uma água viva”, outra criança responde. “Acho que são seres… É um monte de seres” a outra elucida. O universo criado por Thomas Hauert a partir de seu trabalho com balões, suas múltiplas possibilidades de formas, pesos, suavidades, flutuações, voos, é inesgotável. Dar vida a matérias que em princípio nos são tão usuais, como os balões, é um trabalho de artesania extremamente sensível. Mas o que mais punge e afeta nesse espetáculo de Thomas Hauert talvez seja a incrível maestria dos gestos e da dança de Mat Voorter, que não só enxerta vida nesses balões, como também consegue, a partir desse seu corpo-prótese-balão, criar uma nova vida em seu próprio corpo de dançarino. O ser que ele dança, dança a criança, os balões, os voos, as flutuações e pesos que habitam todos nós. Resta-nos agradecer a esses artistas por ainda confiarem nas crianças e por colocarem em protagonismo as sempre tão tuteladas e destituídas forças que povoam nossas infâncias.