No hall da entrada do Teatro Sergio Porto, as pessoas se encontram, conversam, compram os ingressos – sem lugar marcado – e, algum tempo depois, vejo que já posso entrar na sala de apresentação. Logo procuro me aquietar, me preparando para ver este trabalho, Romeu, o mais novo do coreógrafo carioca João Saldanha. Neste momento ele está diante do desafio de interpretar e fazer a direção final dos escritos de Marcelo Braga, seu companheiro de vida e trabalho, falecido recentemente. Saldanha, 29 anos de carreira, considerado um dos coreógrafos brasileiros mais produtivos, é autor da frase: “Não gosto de ficar contido no que é conhecido como dança contemporânea”. Ele estaria aqui desafiando o limite da dança dos vivos que nos reativa no chamado da morte, nos aproximando dos restos e sobras que, na canção, Cazuza já nos afirmava que interessam…
Na penumbra, vejo os lugares nas arquibancadas já bastante ocupados e cruzo a linha de limite entre palco e plateia. Distingo Saldanha em cena, que dá um alô na minha direção, dizendo meu nome – agradável surpresa – , procuro um lugar, agora “personalizado”. Sento e logo já faço parte daquele conjunto de pessoas que vai pouco a pouco se formando ali, atentamente.
Foi dado um sentido de criar um espaço entre todos, Saldanha se relacionando na entrada com seu público. É interessante pensar que já neste momento percebo uma cumplicidade se instaurando, algo quer ser dito no estranhamento de não sermos uma plateia usual, de não estarmos invisíveis, somente no papel de receptores do artista que se apresentará, que se mostrará ali em instantes. Ou melhor, que já está se apresentando.
Aguardamos na expectativa, os desconhecidos, os amigos que entram e são recebidos, enquanto ele, falando continuamente, comenta, brinca, dança no fluxo do movimento pelo espaço, abre braços, mexendo seu corpo com impulsos e volteios. Confessa sobre como se sente, sobre como quer aproveitar para dançar ali, enquanto todos entram, e diz, na provocação, que assim não haverá questões se, em seu Romeu, alguém reclamar de não ter visto dança.
Pergunta para Adriana Pavlova, crítica de dança do jornal O Globo que está na plateia, como seria o nome deste espetáculo. De longe, ela responde algo como: um Romeu panorâmico, e Saldanha repete. Sempre se movimentando pelo palco, sempre na penumbra, ao redor da metade do palco – o lado direito de quem assiste –, pois, do lado esquerdo, a cena está ocupada por uma mesa grande e quadrada, forrada de retratos em preto e branco. No seu centro, uma árvore, como que brotada ali, iluminada por um facho forte de luz. Uma espécie de Bonsai gigante, ali no palco, ali na mesa.
Saldanha mais uma vez pergunta: é hora de começar?
E no fluxo, mais e mais, volteia pelo espaço, abre os braços, mexendo sempre seu corpo no impulso do movimento, suavemente se dirige para se sentar atrás da mesa, onde vemos um copo, uma jarra com água e um caderno/fichário, que ele abre diante de nós.
Tempo de memória, de construção, de dançarinos e coreógrafos que se desnudam, se abrem, se tocam à sua volta, ao seu redor. Em sua potência, afirmam processos de escuta e abertura de possibilidades, de construir, dançar o que importa, o como, não a linearidade das histórias passadas, nem os sentimentos de que somos possuídos. Reflito na busca de uma pergunta diferente do “decifra-me ou te devoro”… como nos afirma Helena Katz no texto O corpo como mídia de seu tempo (2004).
Os sentidos desta obra, através de imagens criadas por Marcelo durante seu tratamento de um linfoma, e lidas por Saldanha em cena, abrem-se na perspectiva do nosso tempo, tão tênue nos seus limites geográficos, raciais, locais. Algo como as incertezas que alcançamos ao caminhar pelos terrenos da intimidade. Não somos obrigados a entender, só efetivarmos um pacto entre nós, vivenciando em suspenso o instante da obra que nos transforma na unidade, aqui entre plateia e palco.
Em cena, João Saldanha canta, entremeando com outras leituras, a frase da canção do musical americano: “Bye bye love, bye bye happiness”.
Quero pensar na pergunta que este corpo faz! No corpo do Marcelo e do João, neste encontro panorâmico, que quer falar dos seus artistas, os de agora e os que não estão mais aqui. Quero pensar no bonsai, ao ver a árvore plantada na mesa quadrada no palco de João Saldanha; seu significado de anseio de vida. Na realidade, o bonsai é uma arte representativa do Oriente que, para alguns, fala das quatro dimensões: comprimento, largura, altura e a própria Vida. Outros colocam o Tempo como a quarta dimensão, uma vez que os bonsais variam com ele, ressaltando que o conceito de Tempo apenas tem significado quando há Vida.
Selado o pacto entre nós, somos parceiros de Romeu, de João e de Marcelo, dos seus amigos de infância, das diferenças dos tempos que correm e atravessam como águas, retratos e folhas nas terras lamacentas do nosso presente.
Viva João, que deu os banhos em seu Romeu! Que planta também árvores, que atrai pássaros, em nossos corações.