Retratos de uma espécie humana

Retratos de indivíduos/ Singspiele – uma concepção de Maguy Marin, que foi aluna de Maurice Béjart no Mudra e no Chandra, onde criou suas primeiras coreografias. A coreógrafa fundou o Ballet-Théâtre de L’Arche, em 1978, que, em seguida, se transformaria na sua Companhia de Dança Maguy Marin. Também dirigiu o Centro Coreográfico Nacional de Rillieux-la Pape, em Lyon, onde sua companhia foi residente de 1998 a 2011. Hoje ela está de volta a Toulouse, cidade onde nasceu, e lá continua trabalhando.

Mestra da coreógrafa brasileira Lia Rodrigues, Maguy Marin está no Brasil, dentro da programação do Festival Panorama 2014, em única apresentação no Teatro Carlos Gomes: um cenário sóbrio, o palco já aberto com uma espécie de paredão ao fundo iluminado. Parecia uma tela cinematográfica branca, onde simetricamente estavam afixados três cabideiros com roupas penduradas em tons preto e branco, um pouco de azul e marrom… Logo abaixo destes cabides, também três cubos de madeira brancos, apoiados em cima de uma passarela estreita que percorria longitudinalmente a cena. Todo o palco preto, uma iluminação constante sobre aquele muro/paredão, que nos remetia a uma vitrine, expondo um caminho largo e suspenso, uma espécie de parapeito de uma grande janela para o mundo.

Tela, moldura, fotografia, imagens… Logo uma figura humana se destaca, usando uma máscara que encobria todo o rosto, tipo um retângulo formado por uma fotografia em preto e branco que mostrava imagens de rostos masculinos ou femininos, ora adultos, ora jovens. Essas imagens eram retiradas como folhas de papel, uma a uma, marcando uma incessante aparição de tipos humanos mais diversos, conhecidos ou desconhecidos. Multidão aparentemente sem relação, sentido ou ordem de importância que ali desfilava, quase um jogo de cartas marcadas que se revelava no anonimato.

Pequenos gestos sustentavam a singularidade de cada um neste caminhar por cima da passarela. O ir e vir de cada atividade humana através de um movimento comum, mas que nunca é o mesmo, percorria a cena, quase sempre no sentido da direita para a esquerda. Estas ações sincronizavam este gestual com as retiradas das folhas que informavam qual figura substituiria e em qual se transformaria logo imediatamente… Folhas como cartas, que, fora do baralho, eram jogadas para além do praticável onde as figuras desfilavam.

Nesta contínua mostra de tipos apareciam personagens cotidianas ou extraordinárias, como um homem de negócios; o espectador de calça preta e camisa branca social que quer fumar mas joga fora o cigarro; o jovem que pega a caneta e a caderneta para anotar coisas; a moça que pinta a boca e risca seu rosto de batom vermelho; alguém que veste o sobretudo, o cachecol, o vestido elegante, o robe oriental de seda vermelho, o lençol branco que compõe o grego; a estátua em repouso; as mulheres e seus saltos agulhas; os velhos burgueses; o jovem desafiador; a moça bem comportada; a mulher domesticada limpando o chão; a atitude de esperar um trem e o som/ruído que compunha estas paisagens; as pessoas cansadas e que esperam desesperam escorregando pelas paredes; o aprontar-se para um encontro, para sair na rua indo para o trabalho, para ir a uma festa …

Fragmentos de histórias, que se abrem e se fecham, ações utilitárias, ou não, são reveladas aos poucos, como sentar nos bancos, apoiar-se nas paredes de forma candente, como um corpo cansado no fim da luta, procurando alívio, se preparando para a competição, guardando objetos ou bebendo água. Todos os movimentos eram gestos ligados e lentos, construindo formas que davam a dramaturgia/ação para a personagem que se construía como o esboço de um desenho. Não se falava, só um leve som de cidade ao redor, o urbano emoldurando aquele constante vestir-se e desvestir-se de personagens em ação.

A plateia na expectativa, silenciosa, como se o atraso de uma hora para iniciar o espetáculo (sob a alegação de falta d’água no Teatro Carlos Gomes) de alguma maneira deixasse todos recolhidos, talvez também necessitando pensar o cotidiano de desafios diários do Rio de Janeiro. Enquanto isto, o performer David Mambouch, bebendo água, trocava a máscara-cartela que tinha uma proeminência que ele possivelmente segurava com a boca, de cueca branca, com uma touca que prendia seus cabelos, e pausava algumas vezes este jogo de cartas embaralhadas. E voltava, reanimando-se em cada figura nova que construía em cena, dando-se lentamente no mesmo ritmo encadeado, do fazer e desfazer.

A litania do cotidiano, um despertar e dormir, um nascer e morrer, uma humanidade que desfilava seus aparatos e silêncios cotidianos numa pulsação constante. Murmurejo, ecos de algo impenetrável, misteriosamente dado tal qual um viver incessante, uma repetição aparentemente sem sentido que nos aprisiona até o último suspiro, grito.

Uma única vez, ouvimos uma música tipo “americana” anos 50, em sincronia com a figura de uma jovem moça. Então surgem mais roupas coloridas… depois um terninho vermelho vestido por uma mulher, que logo se transforma em homem e logo, num final abrupto, um rosto, com a boca escancarada como um grito mudo… Corte da luz.

Pausa final. No ponto central da passarela dos retratos dos indivíduos, elementos-chave para percebermos o constante murmurejar da fraternidade que nos incita além da história pessoal e dos interesses deste mundo…

Para pensarmos de acordo com Maguy Marin em entrevista para Stéphane Bouquet, na Paris Art, de 15 de abril de 2014: “sim… há o desejo de afirmar que estes rostos conhecidos e desconhecidos têm um denominador comum que é o de pertencer à mesma espécie. A espécie humana”.