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Como tratar do que é invisível – Daimón – através do visível: um corpo?
Como falar da presença de uma força que é infinita – porque nunca teve início nem terá fim – dentro dos limites de um corpo que é finito?
E, sobretudo, como fazê-lo sem se valer do recurso à representação?
Luis Garay, coreógrafo colombiano radicado na Argentina, enfrenta este desafio em sua obra Daimón por meio de duas estratégias.
A primeira consiste em tratar o corpo como uma máquina geradora de gestos, de movimentos, de padrões físicos, de posturas icônicas, que opera processando dados armazenados em um arquivo virtual de gestos pesquisados pelo coreógrafo. Em Daimón, este arquivo é constituído de um arsenal de gestos próprios ao treinamento e prática de um(a) boxeador(a), coletados em colaboração com Karen Carabajal, performer e cocriadora do trabalho: uma certa flexão dos joelhos que prepara o corpo para uma reversibilidade das ações, tornando-o apto a mudar rapidamente da defesa para o ataque e vice-versa; um apoio na ponta dos pés que os torna ágeis e velozes, e uma série de padrões de golpes próprios à prática do box, como jabs, diretos, cruzados e ganchos. O vigor desses golpes é acentuado pela ênfase dada ao som da respiração da performer, tornada audível para o público.
Um corpo-máquina não remete a simbolismos, não produz significações. Opera no âmbito do que é físico, do puramente corpóreo. E, assim, não se configura como representação; é pura ação. O trabalho da performer consiste em acessar esse arquivo e organizá-lo enquanto em cena.
A segunda estratégia utilizada por Luis Garay consiste em submeter o corpo-máquina da performer a um processo de repetição exacerbada dos padrões gestuais que ela acessa ao longo da performance. A repetição altera a percepção do tempo. Rompe com a linearidade, promovendo um estado hipnótico naqueles que assistem, fazendo-os se sentir parte da ação no palco. Presenciam um fluxo, um devir contínuo em que transitam forças, intensidades, sensações através dos gestos vigorosos, velozes e precisos da boxeadora. A velocidade dos gestos-golpes, sob o efeito da iluminação cênica, por vezes nos leva a percebê-los como puras linhas no espaço, do mesmo modo como procede uma pintura futurista ao tentar captar o movimento em sua plasticidade, a velocidade em que se produz, libertando-o do figurativo.
Sentados no chão, em volta do tablado colocado ao centro do teatro, que alude a um ringue de box, os espectadores participam de um ritual de luta em que assistem não a um combate entre adversários, mas contemplam a própria combatividade. O formato do ringue – uma espécie de caixa (box) – provoca a sensação de um enclausuramento do público dentro da cena, semelhante ao enclausuramento dos boxeadores no ringue, um espaço do qual não podemos sair, a não ser ao término do jogo proposto, “condenados” que estamos à luta.
A repetição contribui para exacerbar a sensação de enclausuramento, tirando o fôlego dos que observam, criando uma empatia entre o público e a respiração ofegante da atriz-boxeadora. Levada ao paroxismo, produz um estado de hiper-presença ou, ao contrário, uma não-presença?, se interroga Garay[1]. Pois a encenação pode ser percebida como uma saturação dos gestos ativados pelo corpo-máquina da atriz-boxeadora que acentua sua presença em cena ou, ao contrário, a repetição exacerbada pode deslocar a percepção do espectador do corpo físico da boxeadora para o substrato dos gestos, a energia que os impulsiona e os gera.
Garay afirma que trabalha com uma proto-presença[2], o que traz a questão da necessidade de um intermediário. Há que existir uma intermediação entre o arquivo de gestos que a performer aciona – puramente formal – e a encenação propriamente, e essa intermediação é própria à noção grega de dáimon, que dá título à obra.
O termo dáimon aparece já nos poemas de Homero com o mesmo significado de theos, enquanto em Hesíodo se refere a gêneros intermediários entre os deuses e os homens. “Goethe chama demoníaca (das damonische) a revelação do divino no mundo, o inacessível que nos circunda e do qual sentimos o misterioso sopro.”[3]
Que intermediações uma performance envolve?
Na obra de Luís Garay, as intermediações se dão entre o arquivo de gestos e os gestos acessados, entre uma proto-presença e a presença em cena, entre a ação do ator-dançarino e a percepção do espectador. O desafio está em produzir uma empatia, um estado próximo à hipnose que promova a aproximação entre performer e público. Mas também há uma intermediação entre o box e a dança obtida pelo tratamento “futurista” do movimento como pura plasticidade.
Tanto mais olhamos o corpo-máquina da boxeadora e não podemos evitar constatar que se trata do corpo de uma mulher a exercer um papel tradicionalmente atribuído ao homem numa sociedade patriarcal e machista. Olhamos o corpo de uma mulher em combate permanente e extenuante. E nos damos conta da extensão desse combate por toda uma vida.
A luta dos boxeadores nem sempre se restringiu aos limites do ringue. O admirável Muhammad Ali, campeão mundial e medalha olímpica no esporte, travou embates também no campo social, lutando contra o racismo e denunciando a brutalidade de uma guerra injusta e covarde, como a do Vietnam.
Ali nos legou um pensamento, daimón a orientar a condução de nosso destino:
“Flutue como uma borboleta, pique como uma abelha.”
Na luta pelo empoderamento das mulheres, Ella Baker nos legou uma mensagem de combate permanente, citada por Ângela Davis em seu pronunciamento na Marcha das Mulheres: “Nós que acreditamos na liberdade não podemos descansar enquanto ela não chegar”.[4]
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Vera Terra é pianista, compositora e ensaísta. Mestre em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autora do livro Acaso e Aleatório na Música, EDUC/FAPESP, 2000. Foi cocuradora da exposição Begin anywhere: um século de John Cage, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2012. Autora de trilhas sonoras para teatro. Coordena o Laboratório de Encenação e Multimídia da Faculdade Angel Vianna, onde leciona. Participou das imersões do Laboratório de Crítica no Festival Panorama nos anos de 2015, 2016 e 2017, e do livro Performar Debates: LabCrítica no Festival Panorama e outras dobras (2017).
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[1] In: https://walkerart.org/magazine/luis-garay-in-conversation-with-philip-bither
[2] Ibid.
[3] Diálogos: Mênon, Banquete e Fedro – Platão. São Paulo: Edições de ouro, 1969. Apud http://verbofilosofico.blogspot.com.br/2010/11/demonio-interior-daimonion.html
[4] Ver: < https://www.theguardian.com/commentisfree/2017/jan/22/angela-davis-womens-march-speech-countrys-history-cannot-be-deleted >. Último acesso: 20 dez. 2017.
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© Texto produzido durante a Imersão LabCrítica no Festival Panorama 25 + 1. <<Saiba mais!>>