As crianças estão sentadas em semicírculo, organizadas, meio amontoadas. Dentre elas, um grupo de escola acompanhada de monitores e professoras. As crianças do grupo escolar têm uma expressão embasbacada com o tamanho do complexo cultural da Cidade das Artes. Um espetáculo infantil está prestes a acontecer. Mais atrás, adultos, mães e filhos, produtores culturais e outras pessoas sabe-se lá de onde, em pé, mais afastadas.
Todos estão cercados em volta de um espaço que, invisivelmente reservado, nada demarca o palco, senão a primeira fileira de crianças – sob uma atmosfera de “algo vai se passar aqui”. Um espaço dedicado ao festival de arte contemporânea, o Panorama 2015. Por falar em demarcações, vou ensejando a curiosa reflexão sobre a mescla entre espetáculo infantil e festival de arte contemporânea.
Em meio às minhas divagações, sou surpreendido. Não vi entrar o personagem vestido de operário, deitado, a roncar. O espaço vira palco e, com o decorrer da peça, vou sentindo que essa é a única demarcação que importa ali: espetáculo e público, que aos poucos vão se misturando novamente.
Brincadeiras intensas e exaustivas acontecem ali, brincadeiras que disparam um duplo vetor amalgamado: o mundo dos adultos e o mundo das crianças, a imaginação dando voltas aos difíceis aspectos da vida que os pequenos haverão de viver, quando já não o vivem.
Ao primeiro operário, vagarosamente vão se amontoando outros quatro. Eles dormem, um em cima do outro, revezam patamares de apoio para o descanso possível no embolo de corpos. O amontoado de corpos operários dormindo despe seu sono, seus uniformes. Novas roupas: saias vermelhas, pijamas, saias de tule, meias listradas. Canções, barulhos, parcerias e enfrentamentos. Dentre os objetos cênicos ali presentes, me chama a atenção o distanciamento e a aproximação dos corpos; um homem dorme apoiado sobre os pés dos outros quatro.
Eles fazem contato entre si. Um corpo a corpo que reveza afeto com brincadeiras de “lutinha”, desde o estilo samurai, passando pelos clássicos japoneses, até o faroeste ianque. As crianças se surpreendem quando os cinco personagens se juntam e gritam com a língua para fora, uma visita ao rito de guerra dos maori neozelandeses.
Entre a suavidade aproximada de um corpo dormindo no chão, rolando e ascendendo pelos pés e mãos dos outros quatro personagens, e uma violência aproximada dos duelos, os cinco atores sustentam, até o cansaço, uma excursão por entre o imaginário infantil, as brincadeiras de juventude e as pílulas de estilo que o mundo traz. Um funk improvisado na boca de um personagem com macacão cor-de-rosa passa pela plateia fazendo coro.
Nada que as palavras desse texto narram dará a dimensão do que se passa na cabeça das crianças quando elas veem homens vestidos de saia, tule, se amontoando, se encostando, numa atmosfera afetiva. Elas riem. Entre macacões coloridos, saias, tules de bailarino e bailarina, uma ambiência composta de questões de gênero ganha corpo no palco. Corpos que variam roupas, apenas roupas, que no olhar dos adultos e de muitos de nós tornam-se questões de identidade, orientação sexual.
No diferir das fantasias das brincadeiras infantis, os pequenos são ensinados logo cedo a separarem suas roupas. Na “vida real”, há regras de comportamento em detrimento do brincar, do diferir, do revezamento de estilo. Aqui, o espetáculo da Cia. Rec cria uma interessante modulação que rompe com as regras sociais e legitima a alteridade, a diversidade de linguagens, assim, brincando. Agora entendo a importância de um espetáculo infantil num festival de arte contemporânea, pois os artistas da companhia exploram, em confluência com a diversidade de linguagens do festival, as brechas criativas que lhes permitem dar a ver a própria alteridade aos pequenos.
O homogêneo de operários amontoados, a diversidade de personagens e figurinos que os atores revezam tornam bem presente o aconchego que um corpo vive diante de uma carícia, um toque. Numa outra atmosfera, a relação entre corpos é mais hierárquica que aconchegante: um duelo entre aquilo que me parecia um policial e uma vítima aos berros, um terceiro personagem jogando bombinhas de estalo no chão. Estalinhos que não fazem muito barulho na Cidade das Artes, mas que são ecoados por ventos bem próximos dos descampados da Barra, mais a oeste. Penso em abuso e violência, a de gênero, a homofobia, a dos policiais que matam pobres.
Não, nada que estas palavras contam dará dimensão do que se passa na cabeça das crianças, para quem o espetáculo é direcionado. Saberemos o que se passa na cabeça dos adultos, igualmente? A dramaturgia de Pé de vento cabeça no chão, o primeiro espetáculo da Cia. Rec dirigido ao público infantil, consegue produzir uma concretude que vale a crianças e adultos, no amontoado de corpos dos cinco atores. Através das sutilezas de afeto, os excessos de violência e os combates inocentes das “lutinhas” de infância que a companhia encena, podemos permanecer crianças e deste lugar, apreendemos um pouco mais da alteridade, do diferir, do que se passa com o outro.
Com uma arminha de pressão de água, os personagens da peça nos dirigem disparos mais líquidos e fluidos em detrimento da escassez que se produz na cotidiana e diluída anulação da infância institucionalizada, patologizada, criminalizada. A dramaturgia dá a ver os combates urbanos, o desafio de conviver com o que difere e o desafio de consolidar a legitimidade de ser criança, brincar em meio a todos esses estalos.
Enquanto os personagens trocam de roupa, ensaiam brincadeiras, criam jogos em duplas, revelam as camadas de que o indivíduo é composto: o homem de saia aqui e o homem de shorts ali, o opressor ali e a vítima aqui, mas também um grande corpo da companhia, um homem com calças e saias e roupa de operário e saia e vencedor e vencido e cansado e entusiasmado. Através dessa alternância, criam uma dramaturgia da potência do brincar, fantasiar, imaginar, burlando a moralização e demonstrando que nem sempre estamos imunes a ela. Todos os atores revezam categorias opressoras e oprimidas, trios, grupos transcorrem humores concernidos a todas as idades. Os afetos que produzem, deles não ficamos imunes, e a obra ganha relevo na concretude dessa variação de sensações. É para todas as idades. É para um festival de arte. É para crianças.
Com os pés de vento e a cabeça no chão, a Cia. Rec faz um jogo de proporções e redimensionamento cuidadosos, que possibilita apresentar aos pequenos os acontecimentos críticos no campo social, sem perder a alegria singular da imaginação, através dos recursos corporais presentes do começo ao fim do espetáculo. Aqui, sinto-me em presença da delicadeza do tato entre corpos brincantes, das lutinhas e duelos legítimos da infância, mas também das relações de poder que assumem formas de violência fora do brincar.
Quanto às crianças ali, em presença destas brincadeiras, torna-se difícil saber o que se passa na cabeça delas. Na cabeça de qualquer um. A força da obra de Alice Ripoll e da Cia. Rec reside em furtar-se a contar alguma história fechadinha, explicativa e pedagógica. Parecem apostar nas sensações e na sensibilidade de todos, pequenos e adultos, como veículo de uma reflexão que pode ser brincante mas não menos pontual. Brincante, como brincador errante que se oferece ao pueril ofício de mudar de personagem conforme a criatividade possibilita.
A obra traz fragmentos de imaginação em pleno exercício de cinco atores que não subestimam a potência de entendimento e percepção da realidade que as crianças têm. As brincadeiras e os jogos expansivos que desenvolvem no espetáculo devolvem às crianças a legitimidade da hipérbole, um potencial das mentes ainda não formatadas pelos processos hegemônicos da nossa sociedade.
Sem deixar de lado as potências imaginativas e concretas que o brincar traz e tangenciando acontecimentos sociopolíticos que deixam marcas nas cabeças e nos pés dos indivíduos, a dramaturgia da companhia é cuidadosa em endereçar núcleos de tensionamento da realidade aos pequenos. Cuidar aqui significar inclusive deflagrar em cena as contradições que povoam o humano e os choques de diferença entre modos de ser.
Através da concentração de corpos colados, na iminência do toque afetivo e do despimento de conceitos sobre o outro, através dos distanciamento, parcerias e jogos de forças que esboçam excessos, desnudam as camadas do indivíduo sem moralizá-lo ou cair em dicotomias. A dramaturgia e os recursos corporais dos atores investem na capacidade de reflexão dos pequenos em outras esferas de compreensão: sensibilidade, sentidos. Os corpos em cena endereçam fragmentos de sonhos, pesadelos, lutas e uma variedade de sentimentos que são endereçados aos nossos corpos, desde os pés até a cabeça.
Findo o espetáculo, algumas crianças do grupo escolar correm a tirar fotografias com os atores da Companhia. “Tem pouca gente neste lugar. Mais gente tem que ver isso. Mas que bom, as crianças fizeram contato com os atores, com as cores, com o macacão rosa, com a saia de tule, com os afetos”.
Assim divaguei. As palavras não conseguem presentificar muito bem o que ali se passou. O corpo da companhia, no entanto, consegue. Em cena, duram e modulam sentimentos como quem brinca. Quase não sai palavra da boca dos atores, em favor de sons, barulhos, algumas frases desconexas aqui e ali. Em tempos de palavras amontoadas esgarçadas, os pés no vento e a cabeça no chão exploram outros registros de expressão e aventam outras linguagens. Para os pequenos, para todos. Mais gente…