Um homem negro chega perto do microfone, nomeia seus amigos presentes e afirma: “são muitos os capatazes, não é somente um.” O momento é o final da performance Gente de Lá, de Wellington Gadelha. A fala de Maurício Lima, que abre essa crítica, é uma referência ao mote do Festival Atos de Fala – AdF. 19 – neste ano: Escapar do capataz. Gostaria de fazer esse texto pensando justamente o recorte da curadoria, refletindo sobre como é possível pensar na questão do escape, da fuga, a partir de seu modo de articular alguns dos trabalhos apresentados.
Gente de Lá evoca, já a partir do título, a uma distância/ausência. Através de inúmeros materiais dispostos no cenário e manipulados pelo performer, há uma evocação às vítimas do genocídio da população negra nas periferias do Brasil. Sacos de lixo preto, pipas e camisas vermelhas estendidas no chão. O chão é vermelho, como o tênis do performer, que se veste, por sua vez, todo de preto. Os materiais são apresentados um a um, enquanto ao fundo uma projeção pisca “isso é uma emergência”. O espetáculo usa diversos signos que apontam sempre para o mesmo sentido, aliás: isso é uma emergência. A disposição dramatúrgica oscila entre uma redundância típica de qualquer alerta, ao mesmo tempo que parece tentar produzir variações, mas com poucas alterações de sentido.
Se por um lado quase todos os materiais apresentados fazem referência ao assassinato da população jovem e negra por parte do Estado brasileiro, existe um certo contraponto na trilha de funk tocada ao vivo pela dj Priscilla Sousa. Gadelha joga serragem e areia sobre a superfície da caixa e o pó vibra, faz desenhos, se movimenta ao som do 150. É uma primeira tentativa de produzir uma alquimia da presença, inicialmente tornando o som visível através das vibrações do pó sobre a caixa de som. A serragem e a areia remetem também a café e açúcar, como no trabalho de Grada Kilomba, em exposição na Pinacoteca de São Paulo, dois dos produtos extraídos a partir da exploração colonial de mão de obra negra escravizada. Fico ainda com algumas questões: qual a relação entre a música e a desaparição? A música é um traço que fica. O pó dança sobre a caixa de som. A música permanece. Mas e os corpos?
Depois de cerca de uma hora de performance solo no palco, Gadelha interrompe a encenação da ausência de uma “gente de lá” e abre um espaço na cena para a participação de pessoas da plateia. Aqui.
“O microfone está posto e a encruzilhada está aberta”, ele repete algumas vezes, encorajando que sujeitos que se relacionem com as questões encenadas na performance tomem a palavra. O convite aberto no fim do espetáculo tem um endereçamento: Maurício Lima foi um dos muitos artistas negros que tomaram o microfone. “São muitos os capatazes, não é somente um”, ele alerta, logo depois de citar o nome de todos os amigos negros que estavam presentes, como se chamasse todos para prestarem atenção. Em vez de listar os capatazes, como sua fala de início parece querer indicar, ele cita aqueles que devem se proteger. Para falar de alguns assuntos é necessário cautela, um certo silêncio, um direito ao segredo, como diria Jota Mombaça.
Além de Maurício muitos outros artistas negros tomam o palco, alguns declamando poesias, outros dando pequenos depoimentos ou fazendo apontamentos, como foi o caso de Maurício. Uma parte estava lá a convite do próprio Gadelha, outras pessoas tiveram a iniciativa de participar na hora. Chal Enigma e Kaya, dupla de poetas, falaram sobre suas vidas e a lida com o racismo e a opressão de classe. Tuany Nascimento, do Complexo do Alemão, conta da sua trajetória como bailarina e da escola Na Ponta dos Pés[1], que ensina balé para crianças da comunidade e cuja sede foi construída pela própria Tuany junto com o pai, que é pedreiro. Tori Castro apresenta um poema sobre resistência chamado Carne de Pescoço e no final faz uma denúncia sobre um caso de racismo ocorrido no curso de dança na UFRJ. A estudante comunica que dois bolsistas foram desligados de um projeto vítimas de racismo. O caso repercutiu nas semanas seguintes pela internet, mas imagino que muita gente tenha tido o primeiro alerta alí.
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O festival foi realizado em maio deste ano, no Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, “pela primeira vez na zona norte do Rio”, como afirma um de seus releases. O evento, que já aconteceu anteriormente no Oi Futuro Ipanema e no Oi Futuro Flamengo, só foi viabilizado esse ano, segundo os diretores e curadores Felipe Ribeiro e Cristina Becker, através do apoio de um fundo do governo suíço.
Antes de escapar, é preciso saber quem são esses capatazes, como pergunta Maurício na abertura do texto. É possível pensar a capatazia apenas como um modo de operar, sem sujeito? Quem são os capatazes, e quais são as práticas de capatazia possíveis em um festival de dança e performance no Brasil de 2019?
A figura do capataz remete a um passado colonial, ao mesmo tempo em que é continuamente atualizada nas nossas relações de trabalho e de produção artística. Falar de um período pós-colonial significa entender que vivemos não em período de superação da colonização, mas em uma espécie de aprofundamento e complexificação do projeto de exploração do Brasil e de sua contínua subordinação ao interesse do Norte do mundo.
O capataz é uma figura de intermédio. Não é o dono dos meios de produção, nem a classe trabalhadora propriamente, mas justamente aquele que, fazendo parte da classe trabalhadora, é responsável por controlá-lo, vigiá-la, garantir que ela trabalha conforme o desejo do patrão. Ele é mão do senhor, a matéria orgânica utilizada pelo poder colonial, seja onde for, para subjugar e explorar, ao mesmo tempo que não deixa de ser um explorado.
Podem os artistas serem capatazes? E os críticos de dança?
E os festivais de dança, possuem seus sistemas de capatazia?
Obviamente são perguntas retóricas, porque sim, uma sociedade (ainda) colonial é composta por capatazes, espalhados entre os setores de trabalho e exploração nos quais a arte também está inserida. Seria possível realmente escapar do capataz sem antes olhá-lo de frente, encará-lo, tornando opaca sua operação de invisibilização: tornar visível os traços que o capataz produz para se ocultar?
O corpo colonizado esteve desde sempre nesse movimento de fuga e enfrentamento. O enfrentamento, presente na nossa história, porém, tem sido apagado pela branquitude colonial, a qual domina a narrativa cultural de nossa sociedade. Lembro que no segundo grau, longe de ter uma educação descolonial de fato, eram citadas muito rápido uma lista enorme e impossível de decorar as revoltas ocorridas no Brasil Império: Cabanagem, Sabinada, Balaiada, Revolta dos Maltês, Quebra-quilos. Dessas todas, apenas as revoltas protagonizadas por homens ricos e brancos eram de fato detalhadamente estudadas, particularmente a Inconfidência Mineira e, em menor grau, a Confederação do Equador. Um pouco se estuda sobre Canudos, mas quase nada sobre a comunidade Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, povoado de resistência protocomunista que se constituiu no Brasil na região do Cariri, entre as décadas de 1920 e 30. Foi destruído uma primeira vez por jagunços e reconstruído pelos habitantes, mas logo depois bombardeado por tropas do governo federal, sendo segundo historiadores o único caso de um país que bombardeou seu próprio território.
Podemos dizer, portanto, que não é fácil escapar da violência do capataz. Primeiro é preciso sobreviver à violência física, depois, ao apagamento da memória.
Por enquanto vamos nos ater a uma certa ideia de escape que tem a ver com a fuga. As técnicas da fuga exigem técnicas de tornar-se invisível aos sistemas de captura: pegadas que somem, rastros que se apagam, músicas que codificam o caminho para fugir da escravidão[2], vilas camufladas na mata, palenques, cumbes e quilombos: cidades silenciosas, sem galinhas ou animais que façam barulho e em seu lugar criações de silenciosos peixes.
Como criar peixes em um festival de dança?
A proposta aqui é pensar na questão do escape através da dança, do corpo, da performance, então é preciso pensar que a forma de escapar é através, aliás, no corpo. E o corpo não é algo individualizado, solipsista, mas algo que se relaciona com outros corpos e corpas e é afetado por eles. É aí que consigo pensar, por exemplo, na Zona de Escape Ball, festa com competição de voguing que encerrou o evento: é possível escapar em conjunto, criando seu próprio território provisório, no caso a pista de dança LGBTQIA+.
A cultura ballroom nasceu na periferia do Harlem, a partir dos anos 1960, e produz a criação uma espécie de comunidade de sujeitos marginalizados, negros e latinos de gênero e sexualidade dissidentes. Aqui no Brasil a cena tem se multiplicado nos últimos anos com a criação de casas locais, como são chamados os grupos que abrigam, cuidam e promovem juntos as festas, ou balls, como são chamadas.
A competiação de voguing é algo que acontece, “é um levante,” como diz Victor Oliveira, membro da Casa Cosmos. Foi sua casa que organizou a Zona de Escapa Ball, debut da casa na cena ballroom carioca. O território se faz em torno da pista de dança, mas se desdobra numa rede de sociabilidade infinita que percorre internet, vídeos compartilhados no instagram, trocas de mensagens no zap e encontros pessoais, além de rodas de conversas e desdobramentos de várias ações envolvendo a dança e a cultura ballroom. É impossível falar de um acontecimento como uma ball do mesmo jeito que se fala de uma apresentação de dança, porque a ball não deixa de ser uma obra, mas é uma obra coletiva e que se desdobra nos limites da cena: quem a faz, quem a perpetua, o antes e depois do levante. Tudo gira em torno do acontecimento da ball, mas ela é muito mais do que aquele instante: olho do furacão, levante de corpos estranhos.
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O filósofo Dénètem Touam Bona afirma em seu artigo A arte da fuga[3] que, se dentro da sociedade colonial a fuga é impossível e ela só existe e se torna urgente por essa mesma impossibilidade. É nas torções do real e no horizonte do impossível que ela se faz necessária.
Touam Bona cita Fanon, segundo o qual “durante a colonização, o colonizado não deixa de se libertar entre as nove horas da noite e as seis horas da manhã.” A escritora de ficção científica Octavia Butler, por sua vez, dizia que sua vida era a ficção científica de seus bisavôs escravizados.
O sonho portanto não é o oposto do real, mas uma criação de horizonte. Atos de imaginação são a criação de outros possíveis, que podem vir ou a não a se realizar. E esse sentido talvez tenha sido pouco explorado pelo festival. Ou talvez o sonho tenha aparecido aqui na sua versão menos romantizada: uma maneira de escapar talvez seja também o pesadelo, como é o caso de Pôr nu, solo de Victor Oliveira, e de Fortaleza 2040, de Andréia Pires.
A performance de abertura do festival, Fortaleza 2040, inicia no escuro. Aos poucos um feixe de luz acende e vemos Andréia de costas, encurralada em uma quina de parede, longe do proscênio, enquanto curva o torso em direção à parede e requebra o quadril no ritmo de uma batida forte. O som duro é produzida manualmente pelo Honório Félix, escondido no escuro, atrás da plateia junto à mesa de iluminação, batendo a palma de sua mão no encaixe de um microfone.
O movimento e a batida se repetem, em tom de marcha, durante longos minutos. Fortaleza 2040 é o nome do novo plano diretor da cidade, criado pelo governo municipal para, através do planejamento de obras e reordenamentos urbanos, preparar a cidade para seus próximos vinte anos. Uma certa ideia de progresso incessante, grandes reordenações, mudanças, concreto abaixo e concreto acima.
As batidas se repetem, o movimento do quadril também. Uma criatura sem rosto, que marcha com a bunda ao som de uma batida que parece o barulho de instrumentos de demolição. Uma espécie de monstro cego, de ritmo incessante. Em determinado momento, a performer, além de marchar parada, começa a deslizar uma unha na parede, produzindo um som agudo, som de unha se rasgando até chegar à pele. É uma unha sintética, mas a sensação é essa.
A performer nos encara de costas, o que é obviamente um paradoxo. É como estar diante para não ver. A posição articula tanto uma espécie de opressão em relação a parede quanto uma marcha cega sem sair do lugar. Encarar de costas quer dizer ver o avesso. Pires é um monstro que avança contra a parede e também alguém que resiste ao avanço de uma parede-monstro de concreto. Permanece bastante tempo nesse enfrentamento, o quadril sempre requebrando de maneira rígida e bem marcada pelo som da batida.
Chamei esse movimento de marcha, pela sua dureza, mas na marcha militar na verdade não há movimento de quadril. Continua sendo uma marcha para lugar nenhum, como as marchas de exercício militar, mas essa é feita com a bunda.
Estamos desde já numa espécie de fluxo militar do tempo. Tempo sem contratempo. Tempo que avança no tempo de maneira regular. O que fazer daqui para trás, pra frente o pior. Existe uma questão sobre frontalidade no espetáculo. Quando finalmente se põe de frente, depois de rastejar pelo palco, uma mão erguida para o alto no formato de garra, Andréia está com os olhos revirados. Se antes não víamos seu rosto, agora é ela que não nos vê.
Encara sem ver, ao mesmo tempo em que canta uma paródia do hino da bandeira e parece tentar reger uma plateia ou uma banda imaginárias. Reger sem enxergar: uma forma de poder absoluta, ranhosa, fora de si. O sonho se produz coletivamente, e o pesadelo também. É preciso engajamento para que eles se realizem como horizonte e como acontecimento de futuro.
Coma merda, querida criança
Quebre o mundo e mate seus pais
Beba o sangue que vem da matança
Vem para essa dança
Viva os marginais
Recebe no cu o que se espera
De uma cidade que faliu
O projeto completo de uma era
Pro diabo o Fausto que o pariu
O futuro é feito desgraça
Vejam crianças
O pássaro azul
O cadáver exposto na praça
Com as milícias, feito urubus
Recebe no cu o que se espera
de uma cidade que faliu
Pinho sol é um crime que se opera
De homens livres presos no canil
Vão cercando com seus próprios braços
Dragões e poços
Pontes e mutuns
Corram todos ou fiquem estancados
Constituintes com seus corpos nus
Recebe no cu o que se espera
de uma cidade que faliu
Eis o muro que escapa a janela
A garganta do cão está febril
Letra da paródia do Hino da Bandeira fornecida pela artista
O canto de Andréia Pires revive pesadelos vivos, canta com voz gutural, como se fosse uma voz revirada ao avesso, falhando, falindo. Faz referência a Rafael Braga, guardador de carros do Rio de Janeiro preso durante as manifestações de 2013 acusado de “participar de atos violentos” por portar supostos coquetéis molotv que eram na verdade Pinho Sol, segundo a própria perícia da polícia. As outras referências eu prefiro que habitem os pesadelos dos outros. O canto celebra o horror do dia a dia, da aceleração da perda de direitos e do aumento da violência do Estado contra aqueles que não se enquadram no seu projeto disciplinador. No final, uma banda de fanfarra entra em cena, calçando chinelos de dedo e trajes simples, enquanto a iluminadora Geane Albuquerque e o performer sonoro Honório Félix entram em cena, cantando junto com Pires e batendo o pé no chão. Eles se dirigem à plateia, tentam fazer com que cantemos juntos.
Cantar o fascismo com os olhos revirados, girando os braços no ar, é como enlouquecer para não enlouquecer. É como aceitar o horror para se livrar dele, deixá-lo passar. É como devorar a tormenta e devolver ela de volta com cuspe. É escarnecer a marcha fascista, em vez de apontar para ela ou discuti-la civilizadamente: cuspir seu gosto azedo em vez de falar sobre ele. Atos de cuspe, atos de canto, atos de acanalhação.
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Já Pôr nu, performance de Victor Oliveira, propõe outra provocação: o que seria uma presença insuportável para nosso olhar majoritariamente colonizado pela normatização heterociscêntrica? Uma imagem que é menos um monstro em si, mas um reflexo monstruoso do olhar do outro. Uma nudez de moldura monstruosa, cuja moldura é um certo tipo de olhar que se faz sobre o corpo.
A palavra espetáculo quer dizer “algo para se observar”, e o que supõe implicitamente uma certa cisão entre artista e espectador: um é visto, o outro observa. Aqui é o corpo nu de Victor que nos olha. Inicialmente em pé em cima de um banquinho de madeira. Sua pele brilha com uma substância oleosa. Seu cabelo está raspado e seu corpo raspado, completamente sem pelos.
Victor coloca seu corpo em posições e torções que evidenciam seus genitais, seu períneo, seu cu. Uma nudez pontuda, um corpo que vibra, grunhe e se expõe para morder. Literalmente: para além de se por num banquinho que faz às vezes de pedestal, de suporte para um objeto plástico a ser observado, ele é um objeto que grunhe. Seu grunhido parece um choro, mas parece também raiva de bicho preso, não domesticado. Seu corpo, aos poucos, depois de permanecer a uma distância segura da plateia, começa a se aproximar. Adquire uma nova pose e fica nela durante um tempo, distendendo sua presença e chegando muito próximo das pessoas. Olhando elas com seu cu e às vezes, com seu pênis, com sua pele.
É uma espécie de reversão do voyerismo e da objetificação, em que aquele que assiste é colocado no lugar de risco, de proximidade desconfortável. São poucos os elementos da performance: o óleo corporal, as poses difíceis de manter, o órgão genial preso entre as coxas, o corpo que fica de cabeça para baixo em determinado momento, o banco suporte do corpo que depois se encaixa na cabeça. O que torna esse corpo monstruoso é uma construção cênica muito sutil, muito frágil. Ao mesmo tempo, essa fragilidade foi e parece ser suficiente para assustar alguns espectadores. Fora isso, há uma escolha muito clara por parte do performer de com quem interagir. O espectador não é neutro, sabemos, e não é tratado assim por Oliveira.
O performer, em Pôr nu, reflete de volta as fantasias coloniais de um corpo que falha em reproduzir a matriz cisheteroterrorista. Um corpo que precisa devolver um certo olhar monstruoso para se manter vivo e não sucumbir diante do constante olhar violento da norma. Não é o corpo do performer que está despido apenas, mas sim um desnudamento do olhar do espectador. Escapar do capataz que nos olha e nos deseja visíveis, e olhar ele nos olhos com o horror que ele nos direciona.
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Alguns comentários mais breves:
Enquanto assisto Mordedores, de Marcela Levi e Lucía Russo, uma tempestade cai lá fora. As janelas estão tampadas com tapumes pretos. Escuto o barulho da chuva, gritos de gente passando na rua. É sábado à noite, a cidade está agitada. Moro no Rio de Janeiro e fico um pouco receoso do que esteja acontecendo na rua.
Os performers começam o espetáculo sentados junto ao público e pouco a pouco começam a morder o que parecem pedaços de isopor. Em seguida, vão cumprindo um itinerário circular em torno do palco, sempre mordendo uns aos outros. É uma violência disseminada, homogeneizante, em que todo mundo se morde e é mordido? O que se constrói a partir dessa violência?
Em determinado o performer Lucas Fonseca escapa do bolo de mordedores, corre com uma capa de plástico bolha, para logo depois voltar a esbarrar no grupo. Em outro momento, alguns dos performers começam a rir, um riso forçado, grave. O que é resistência e o que é tensão? A encenação da violência mecanizada não me move, nem me tira do lugar. O único momento que me sinto em risco é quando as luzes apagam e uma risada continua. Um fiapo de tempestade parece furar a parede e entrar na sala.
Se o folder entregue na entrada da performance afirma o desejo de explorar a violência “como um caráter não necessariamente aniquilatório”, nos parece que o que se encena é uma certa homogeneização e mecanização dessa violência e não exatamente uma possível energia do conflito ou do embate que produz diferença. Encenar uma mordida que não morde, que desliza, escancara um certo limite do trabalho, como disse o crítico Joubert Arrais.[4]
No segundo dia de programação ocorreu a palestra Do desgoverno como forma de administração à permanência estranha: a prática de performance em contextos de contradição, de Simone Aughterlony, seguida de uma conversa com a artista e Welligton Gadelha e Ivy Monteiro, conduzida pelo curador do festival Zurich Mooves, Marc Streit, que possui uma parceria com o festival. Fiquei me perguntando o por quê da conversa incluir alguns artistas e outros não.
Entendo a limitação de espaço e tempo, mas o evento Sesc Entredanças, realizado também em maio desse ano, encontrou uma solução interessante ao chamar para uma fala de abertura todos os artistas a participaram desta edição, que passavam de uma dezena. Foram três horas de conversa, em que cada participante teve cerca de dez minutos de fala, o que proporcionou que o público interessado tivesse um panorama da mostra, que esse ano tematizava o corpo negro em cena. Não cheguei a ver depois todos os espetáculos da mostra, mas me chamou atenção o modo inventivo e generoso que a curadora Carmen Luz encontrou de dar voz a todos e produzir uma aproximação com o público, que podia fazer perguntas e conhecer um pouco de cada trajetória e proposta artística. Mesmo sem ter visto todos os espetáculos, fiquei com a impressão de que tinha conhecido um pouco mais a cena dos artistas que estão pensando o corpo negro e suas questões, um momento de partilha de visibilidade e de diálogo entre eles e o público.
Acho que é um experimento que pode ser mais explorado por outros festivais.
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I’m gonna need another one, da americana Jen Rosenblit, não pôde ser realizada pela criadora da performance, que teve um problema para embarcar para o Brasil, e foi substituída por Eleonora Artysenk.
Ao entrar na sala da apresentação, luzes todas acesas, recebemos um papel com a tradução em português de um áudio que será tocado durante toda a performance. O texto fala sobre a vontade de fazer uma casa desmoronar, de desfazer e fragmentar um cotidiano preenchido por objetos e materiais que conformam esse cotidiano. No chão da sala temos diversos objetos dispostos, espuma para arranjo de flores, um capacete, algumas cenouras, uma munhequeira.
Fiquei confuso com a utilização do texto na performance, porque achei difícil ler e conseguir acompanhar o fluxo das ações. Ao pesquisar na internet descobri que originalmente a performer declama o texto que está na gravação enquanto performa. Além disso, a performance original é feita no nível alto, Rosenblit interage com a plateia, fazendo perguntas enquanto dá seguimento ao seu monólogo.
Na versão de Artysenk, a partir da sugestão de Felipe Ribeiro, curador do festival, segundo me contou a artista, a artista fica sempre no nível baixo, rolando pelo palco. Entre objeto e objeto, há interações corporais mais sutis. Arysenk teve menos de 24h para aprender a performance e a executou como se fosse sua. Infelizmente, como os materiais gráficos do festival já estavam prontos, seu nome não constava lá, mas até hoje[5] seu crédito não está posto também no site do evento. É importante pensar as políticas de crédito, especialmente quando um artista latino-americano substitui uma artista estadunidense e que reside atualmente na Europa.
Além dos espetáculos apresentados, aconteceu no Centro Coreográfico também a exposição do trabalho da artista Flávia Naves Quem mandou matar Marielle, uma tentativa de documentação de uma ação que a artista realizou durante mais de um ano: sair todos os dias de casa usando roupas que estampavam a pergunta que deu nome ao trabalho. A ação vinha sendo documentada em uma conta do Instagram do projeto, mas para o festival foi adicionado outro desdobramento para além desses registros. A artista criou um totem com sua imagem usando calça preta, coturno e camiseta branca com a pergunta sobre o assassinato, mas sem cabeça. O totem foi colocado em vários espaços turísticos do Rio de Janeiro: MAM, praia de Copacabana, Museu do Amanhã e foram tirados retratos de pessoas encaixando seu rosto figura. Algumas pessoas estão sérias e outras tem um riso que perturba, dado o contexto da imagem.
A primeira ação de Flávia não foi pensada inicialmente para o contexto expositivo. Seu intuito, ela conta na postagem inicial do Instagram do projeto, que não estava transcrita na exposição, era reverberar uma pergunta que, dois meses depois do assassinato de Marielle, continuava não respondida e executar a ação de vestir somente roupas que tivessem a indagação “Quem matou Marielle/Quem mandou matar Marielle” até o dia em que os mandantes de seu assassinato fossem desvendados ou que ela conseguisse suportar realizar a ação. Boa parte da força da performance, que já acompanhava nas redes sociais, vem dos relatos cotidianos de pequenos encontros e diálogos com estranhos sobre o tema da ação. Na disposição do trabalho nas paredes do Centro Coreográfico, porém, as imagens não são suficientes. Há uma certa traição da performatividade da ação quando ela se torna uma espécie de mostração sem narrativa, sem a possibilidade de acessarmos a experiência da performance e os encontros que ela desencadeia.
Já o segundo desdobramento do trabalho, o totem da artista disponibilizado nos pontos turísticos da cidade (que continua linda e opressora, como escreve Matheusa Passareli[6]), me deixaram um tanto confusos e criaram certo mal estar entre os espectadores: é uma crítica as apropriações das lutas de minoria representadas por Marielle? É uma tentativa de multiplicação da pergunta?
Há problemas no modo de exposição, que não possibilitam discernir exatamente qual é o contexto da ação. Como as pessoas são convidadas a interagir ou não com o totem? O que conversam? O que desejam com a produção dessa imagem? Por onde essas imagens circulam, apenas no festival? Sem possibilitar que nos aproximemos de fato da experiência: ficarmos apenas com uma certa superficialidade das imagens: nelas, o que vemos é um corpo de uma mulher branca protagonizando uma questão que envolve justamente problemas de visibilidade de corpos negros, quer dizer, da empatia com o extermínio da população negra, que se perpetua mesmo quando alguém como Marielle Franco, uma das cinco vereadoras mais votadas na cidade do Rio de Janeiro, consegue ascender a lugares de poder.
Em conversa com Flávia em abril, a artista falou justamente desse limite da primeira parte da performance, no baixo risco que seu corpo corre e na necessidade não só de responder à pergunta de quem matou Marielle Franco, não apenas cobrar a devida investigação, parada desde o início do ano quando se anunciou de forma espetaculosa a prisão dos supostos assassinos, sem esclarecer motivos ou os possíveis mandantes do crime, mas agir para evitar que esse genocídio continue acontecendo. Deter o capaz, fazê-lo parar.
Foto da capa: Andréia Pires em Fortaleza 2040, ©Renato Mangolin.
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[1] Entrevista de Tuany Nascimento sobre a escola https://www.vozdascomunidades.com.br/geral/entrevista-tuany-nascimento-criadora-do-projeto-na-ponta-dos-pes/
[2] Segredos que se espalham à luz do dia: muitas músicas de blues eram na verdade formas codificadas de ensinar caminhos para fugir dos estados escravocratas do sul para os estados livres do norte dos Estados Unidos.
[3] BONA, Dénètem Touam. A arte da fuga: dos escravos fugitivos as refugiados.. Tradução: Amilcar Packer. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/438170205/A-Arte-Da-Fuga-Denetem-Touam-Bona. Acesso em 4 de dezembro de 2019.
[4] Texto sobre uma apresentação do trabalho em 2016, no Festival de Teatro de Curitiba, então com outro elenco https://enquantodancas.net/espetaculos/mordedores-marcela-levi-lucia-russo-festival-teatro-curitiba-2016/
[5] Dia 28 de novembro, último dia de revisão desse artigo.
[6] O Rio de Janeiro continua lindo e opressor, disponível em: https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2018/05/matheusa-o-rio-de-janeiro-continua-lindo.pdf