O que podemos dizer sobre ela?

O que se move quando se dança? O que leva um bailarino a mover-se? E o que, ao mover-se, o bailarino faz mover na audiência?

Na tradição do balé, o mover-se do bailarino ou bailarina esteve sempre associado a uma história (narrativa) e a uma música (baseada ou não em uma narrativa), que constituíam a base para a criação coreográfica. A quebra de paradigmas do balé clássico, efetuada pela dança contemporânea, colocou em questão este vínculo, abrindo novos campos de experimentação para a arte da dança.

Já na abertura da edição 2015 do Festival Panorama, fomos surpreendidos por uma bailarina-coreógrafa que dança ao som da gravação de uma aula do filósofo francês Gilles Deleuze, na peça O que podemos dizer do Pierre, uma improvisação de Vera Mantero realizada ao ar livre, nos jardins do Parque Lage. Surpreendente também foi a apresentação, numa sala de concertos tradicional, do duo Jonathan Burrows e Matteo Fargion, ao dançar em silêncio, movimentando tronco, braços e mãos, sentados em cadeiras, na peça Both sitting duet, guiando-se por uma partitura de gestos ritmicamente estruturados, sem espaço para improvisação.

Podemos, como Pierre, “que passou a sua vida, grosso modo, no primeiro tipo de conhecimento”, a que chamamos, nos cursos de filosofia, de “senso comum”, recorrer a expressões já banalizadas pelo uso e dizer: “isso não é dança” ou, apelando para outra convicção do senso comum de que “gosto não se discute”, dizer simplesmente “não gosto”, “não me agrada” e encerrar o assunto e qualquer possibilidade de questionamento.

No entanto, o caráter não convencional dessas coreografias nos convida a sair do primeiro tipo de conhecimento, em que se situa a maioria das pessoas, e, para isso, como afirma Deleuze em sua aula, citando o pensamento do filósofo Baruch Spinoza, “é preciso (mesmo assim) um pouco de filosofia”. Diríamos, é preciso pensar a dança, discutir seus fundamentos estéticos para não só apreciar a forma como a dança se configura na contemporaneidade, como para criá-la sob novos parâmetros.

Neste ano, 2015, o Festival Panorama nos convidou e instigou, a partir de sua linha curatorial, a pensar a relação entre dança e texto. De que modo esta relação produz uma tensão que libera forças criativas ainda não experimentadas no campo da dança?

Um olhar sobre a história nos remete àquela que foi, provavelmente, a primeira coreografia criada a partir da relação entre dança e texto: How to pass, kick, fall and run, criação do coreógrafo norte-americano Merce Cunningham, estreada em 1965 no Harper Theater, em Chicago. Os movimentos dos grupos de bailarinos, ocorrendo simultaneamente no espaço, se faziam acompanhar da voz de John Cage, narrando ao vivo, no palco, no transcorrer de um minuto, uma anedota, breve relato pitoresco ou divertido de uma experiência vivida pelo compositor, extraída de seus livros Silence (1961) e A year from monday (1963), seguida de um momento de silêncio. À narração se sobrepunha a manipulação, por meios eletrônicos, realizada por David Tudor, da conferência Indeterminacy, proferida por John Cage.

Dança e música (texto), na obra, são submetidas aos mesmos processos que fundamentam a poética dos dois artistas: a simultaneidade de eventos e a indeterminação.

No livro Chance and circumstance: twenty years with Cage and Cunningham (2007), Carolyn Brown, bailarina da companhia de dança de Merce Cunningham, descreve o modo como a coreografia foi estruturada:

Como o título sugere, ela tem a energia dos pulos e saltos, corridas e quedas que vemos nas atividades esportivas, mas sem qualquer referência literal a um esporte particular. Era “danç-ante”, com agrupamentos interessantes, mudanças de dinâmica, variedade rítmica. Foram usados processos aleatórios para planejar as entradas e saídas, percursos no espaço, velocidade, níveis, números de bailarinos – a gama habitual de possibilidades. Merce costumava definir os grupos de bailarinos, mas a fraseologia, os ritmos internos não eram ditados. A maioria das vezes, podíamos nós mesmos descobri-los. O que parecia ser muito diferente nas danças construídas com processos aleatórios era a sensação de liberação, que permitia a exuberância, a alegria e a diversão. Até mesmo a ternura!

Cage e Cunningham pesquisaram novas relações entre música e dança, propondo a independência entre elas, abrindo um campo de inúmeras possibilidades para a criação coreográfica. Num dos quatro escritos sobre dança, publicados no livro Silence, Cage fala sobre esta relação em suas parcerias artísticas:

Há uma independência entre música e dança. Essa independência decorre da crença de Cunningham, que eu compartilho, de que o suporte da dança não deve ser buscado na música, mas no próprio dançarino, sobre suas duas pernas ou, eventualmente, sobre apenas uma […]. Dessa independência entre música e dança resulta um ritmo que não é o das patas dos cavalos ou de outras batidas regulares, mas que nos lembra uma multiplicidade de eventos no tempo e no espaço – por exemplo, estrelas no céu, ou atividades na terra vistas do alto.

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Ao abordar a relação entre dança e texto nas coreografias apresentadas no Festival Panorama 2015, um primeiro nível que se oferece à análise – o mais evidente – é o tratamento sonoro dado ao texto, que orienta e justifica sua escolha como trilha musical pelo coreógrafo.

Um texto, ao ser utilizado no lugar da música em uma coreografia contemporânea, é tratado em sua oralidade, à maneira de uma poesia sonora, explorando a sonoridade das palavras e fonemas, assim como a “melodia” evocada pelo próprio modo de narrar ou de pronunciá-lo. A noção de música é expandida para além da linguagem convencional, caracterizada por um ritmo que acompanha uma melodia baseada numa harmonia. O significado é mais um elemento, não o único e primordial, do texto. Em How to pass, kick, fall and run (1965), este confere humor ao espetáculo, acentuando o aspecto imprevisível e surpreendente dos acontecimentos da vida.

Na coreografia O que podemos dizer do Pierre (2015), Vera Mantero dança ao som da voz do filósofo Gilles Deleuze. “Minha música é o pensamento dele, as palavras dele, as impressões dele”, comenta em entrevista concedida ao Panorama, logo após uma de suas apresentações nos jardins do Parque Lage. Vera deixa-se não só afetar pelo texto, como também o afeta, submetendo-o a processos de edição musical próprios aos meios eletrônicos. Fazendo pequenas manipulações na gravação, enfatiza aspectos “musicais” da fala: acrescenta repetições às já existentes, prolonga alguns intervalos de silêncio que fazem “respirar” os pensamentos; busca ritmos que a estimulem a dançar; deixa-se sensibilizar pelas variações de timbre que transmitem a emoção contida na voz e, com isso, faz perceber que o pensamento filosófico não é exclusivamente da ordem do logos, mas também da ordem do sensível.

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Um segundo nível da relação entre dança e texto, não tão evidente numa primeira tomada de contato com algumas obras apresentadas no Festival Panorama 2015, diz respeito não ao texto em si, ou seja, à expressão linguística, mas às técnicas de escrita (composição) empregadas na sua criação. Nestas obras há uma apropriação de métodos peculiares a outras linguagens artísticas e uma transcrição destes para a composição coreográfica, assim como para a técnica do desenho, o que promove um deslocamento e interpenetração fecundos entre os diferentes campos das artes. Esta apropriação e deslocamento se dão entre literatura e dança, entre literatura, dança e música, entre dança e desenho.

Na peça O que podemos dizer do Pierre, a coreógrafa Vera Mantero não só se apropria de técnicas de edição musical para conferir ao texto (a gravação de uma aula de Deleuze sobre Spinoza) uma fraseologia que o aproxima do discurso musical, como também se apropria do método de “escrita automática” dos surrealistas. O uso do automatismo em literatura visa o fluir sem censura das palavras, a liberação de conteúdos inconscientes, à maneira do método de associação livre criado por Freud. Vera se apropria da escrita automática como meio de fazer aflorarem gestos e movimentos não convencionais, criando uma dança intuitiva e um vocabulário próprio, sua assinatura como bailarina.

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Na obra Entre ver, uma criação de Denise Stutz, ao texto, como numa criação literária, é atribuído o poder de produzir imagens (mentais) através de uma ordenação narrativa construída pela autora, de modo a configurar uma descrição ou uma narração, acompanhada ou não de uma reflexão.

Denise visa produzir um efeito de metalinguagem, através de uma decupagem de todos os elementos que compõem um espetáculo de dança. A artista elabora a linguagem de seu espetáculo, estruturando-o na forma de uma narrativa que se realiza ao vivo, amplificando sua voz com o uso de um microfone. Toda a maquinaria de um espetáculo cênico é descrita pela autora, que atua como diretora, desde o momento que marca seu início, com o apagar das luzes da plateia, simultâneo ao acender das luzes do palco, produzindo a magia do espetáculo, alimentando a expectativa do público.

Denise convida os espectadores a perceberem o espaço, convertido agora, pelo uso da iluminação, em espaço cênico, delimitando palco e plateia. Convida-os, em seguida, a tomar decisões sobre o espetáculo, a escolher em que ponto desse espaço surgirá a bailarina. No entanto, a participação do público nessas decisões não se concretiza, uma vez que Denise nunca abandona o papel, que atribui a si mesma, de diretora de cena, que mantém todos os componentes do espetáculo sob seu controle.

Ouve-se então a narração de uma história, de fragmentos de uma história, de cunho autobiográfico, estruturada na forma de flashbacks, memórias selecionadas pela autora de sua vida privada e de sua atuação profissional como bailarina. O narrar, por si só, é capaz de dissolver as fronteiras entre público e privado? Entre artista e público? O texto – a narração de Denise – “brinca” de mover na audiência esses limites; testa extensões de tempo (cênico-narrativo) e, nesse jogo, experimenta a escrita coreográfica como escuta.

Súbito, a diretora-bailarina atravessa o palco em diagonal para, em seguida, voltar a se ausentar dele, oferecendo ao público a audição, agora, de uma música. Blackout: faça-se a sombra para dar lugar a uma voz. Ouve-se uma canção de Caetano Veloso – decupagem da trilha sonora. Ouve-se o timbre de sua voz na gravação durante o desterro em London. A música, na forma como se estrutura, reproduz a narrativa do espetáculo, pois é uma canção no exílio num espetáculo em que a bailarina se exila do palco, e porque intercala à melodia principal, cantada em inglês, memórias musicais da terra natal do cantor-compositor, cantadas na língua materna, o português, de modo análogo ao aflorar das memórias da autora.

Entre ver se situa nos espaços estruturados como fronteiras: entre o visível e o invisível, entre presença e ausência, entre gramática e a-gramática, entre ser e não ser.

A diagonal, percorrida pela diretora-bailarina, no único momento em que se apresenta no palco, pode ser apreciada como uma possibilidade de dissolução dessas fronteiras. Pois a diagonal não divide, ela atravessa. A diagonal parece resolver a questão que a narração, por si só, não conseguira solucionar, afirmando a potência da performance em relação ao texto. E, assim, fundamentar a escolha do/a bailarino/a, do ator/atriz, dos contadores de histórias pela cena.

Diagonal barroca. Ponto de fuga, ao través. Obliquidade. Longo caminho (it’s a long way, repete a canção, long, long, long, long) para inscrever uma assinatura (vida como coreografia de Denise). Deixar para trás o passado em direção a …

Cabe inscrever, nesse momento, na coreobiografia de Denise, um texto de Vera Mantero: “Vejo as artes como um resíduo, aquilo que resta de uma série de coisas que o ser humano gosta de fazer para manter o seu espírito num ponto de possibilidade.”

Linha de fuga. A diagonal percorrida pela diretora-bailarina aponta um campo de possibilidades. Uma vez percorrida, resta desaparecer, pois, tal como o propõe Peggy Phelan, o ser da performance, assim como a ontologia da subjetividade, “atinge-se por via da desaparição.”

Is it a long way? Temos todo o tempo do mundo (o nosso) para buscá-lo, percorrê-lo, encontrá-lo e, definitivamente, perdê-lo.

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Se nas obras de Vera Mantero e de Denise Stutz a coreografia se apropria de técnicas peculiares a outras linguagens artísticas, como a literatura e a música, no projeto de Michel Groisman intitulado Risco (2015) dá-se o inverso. A dança serve de base para criar um novo método de desenhar, de execução coletiva.

Aparentemente, desenho e dança guardam poucas relações entre si. No entanto, se recorrermos à etimologia, verificaremos o quanto estão relacionados desde a origem, pois a palavra coreografia é formada pela reunião dos étimos gregos khoreia (χορεία), que significa dança, e graphein (γράφειν), que significa grafia, escrita. Dança e desenho constituem, ambos, grafias no espaço; a primeira inscrevendo nele gestos e movimentos, a outra, linhas e cores (“riscos”).

Michel Groisman imagina e constrói, como artista-artesão, uma máquina de desenhar que exige mais de um participante para fazê-la operar. Recorre a elementos que um bailarino ou bailarina mobilizam ao se expressarem através dos movimentos de seus corpos, de modo a lhes oferecer a experiência de desenhar sobre o papel através de sua máquina. O “peso” permite imprimir ao pilô diferentes pressões sobre o papel, que resultam em espessuras distintas do traço. As “articulações” entre as partes duras de madeira – os “ossos” da máquina –, obtidas através de peças oscilantes de metal que ligam os blocos entre si, possibilitam mudanças de direção e de qualidade do traçado (retas ou curvas). Ao mesmo tempo, evitam que um movimento brusco ou muito forte quebre a máquina e, em vez disso, apenas desmonte a engrenagem, proporcionando aos participantes uma nova tentativa, o recomeço da experiência.

O título da obra joga com a ambiguidade de sentidos. Risco pode se referir ao traçado do desenho, como pode significar arriscar, atitude que assumimos quando nos aventuramos em uma experiência da qual não temos controle ou certeza sobre o resultado. Esse risco, que está em jogo, afirma o caráter experimental da ação proposta pelo artista.

Ao manipular a máquina de Groisman, sentimo-nos envolvidos em um jogo, um brinquedo, que, como muitos outros, requer a participação de duas ou mais pessoas. No entanto, a máquina de brincar de desenhar projetada por Groisman se diferencia de outros jogos ou brinquedos por formar pares ou grupos não para colocá-los num regime de competição, mas, ao contrário, para que desenvolvam a cooperação.

É também uma máquina de escutar. Escuta silenciosa do outro, atenção e intuição de seus movimentos, bailado sobre uma superfície de papel onde se inscrevem, coletivamente, os traçados, os riscos.

Máquina que exercita o ceder e dialogar, em lugar do competir e ditar.

A estética se exerce como ética.

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“O que podemos dizer de um texto”, ao ser deslocado do campo da literatura, da música ou do desenho para se inscrever em uma coreografia?

Uma primeira conclusão que podemos extrair desses deslocamentos é que produzem uma ressignificação. O texto-aula de Deleuze é ressignificado pela coreografia de Mantero. A canção de Caetano é ressignificada pela coreobiografia de Denise. A máquina de Groisman ressignifica a noção de desenho, atribuindo-lhe uma dimensão ética. As partituras criadas pelo duo Burrows e Fargion ressignificam gestos e músicas do cotidiano e de coreografias consagradas, conferindo-lhes um humor crítico.

Para a arte importa que a ressignificação produzida pelo deslocamento confira à obra um teor original e poético. Esses aspectos definem um critério para elaborar uma “crítica”.

Sendo a coreografia uma escrita, como está implícito na etimologia da palavra, o que diferencia as obras analisadas dos demais “textos” coreográficos?

As apropriações e deslocamentos que apontamos nestas obras mostram não só o uso do texto associado à dança, como o recurso à intertextualidade.

Esta, a intertextualidade – em lugar de representar através de gestos e movimentos uma história (narrativa) acompanhada de uma música, como na tradição do balé –, permite que se rompa o uso da dança enquanto representação, para abrir-lhe novas possibilidades expressivas e de crítica, seja social, estética, ética ou política.

Aí reside a originalidade e o teor poético dessas obras, elementos que definimos como critérios para uma crítica.

 


NOTAS
Extraído da transcrição impressa da gravação da aula do filósofo Gilles Deleuze sobre Spinoza, distribuída ao público antes do início da apresentação de Vera Mantero nos jardins do Parque Lage.
BROWN, Carolyn. Chance and circumstance: twenty years with Cage and Cunningham. Hardcover: Deckle Edge, 2007. p. 461. Tradução nossa.
Ibidem. p. 94. Tradução nossa.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=FwDBX9bo8HM>. Acesso em: 9 nov. 2015.
Refiro-me a essas três instâncias narrativas – a descrição, a narração e a reflexão – com base no livro Palomar, de Ítalo Calvino, no qual o autor organiza a subdivisão em capítulos e as divisões internas a estes, de modo a explorar todas as combinações possíveis entre os diferentes modos de narrar.
MANTERO, Vera. A desfazer-se. Elipse – Gazeta Improvável. Lisboa: Relógio d’água, nº1, Primavera 98, p. 3.
PHELAN, Peggy. A Ontologia da Performance: representação sem produção. Trad. André Lepecki. Revista de Comunicação e Linguagens. Lisboa: Edição Cosmos, 1997. p. 171.