Um espetáculo que começa no escuro, onde o nada que vemos se transforma em tudo que podemos perceber. Ha! tem uma potencialidade que transborda continuamente pela apresentação. Da penumbra surgem movimentos catárticos, estamos aparentemente diante de um culto, um transe que leva os performers presentes naquele palco escuro a repetir uma entonação e um movimento sem fim.
É quase uma agressão para a plateia. Ficamos imaginando: será que eles estão sofrendo? Se machucando? Não temos certeza de nada; a curiosidade de compreender aquela cena, o que está sendo entoado, cresce a cada momento. Entender aquela ausência, o que se esconde por trás do breu, parece ser a principal missão do público. Quem está no palco? Estamos diante de quantas pessoas, quantos corpos se fazem presentes? Essas questões vão se diluindo à medida que a luz começa a entrar no espaço cênico e percebemos que os performers são apenas mulheres, mulheres de diferentes formatos, com diferentes vozes e capacidade de movimentação em cena.
Dentre as mulheres que ocupam o espaço da cena se encontra a própria coreógrafa, Bouchra Ouizguen. Em entrevista feita para o festival, ela revela que o espetáculo se insere em sua pesquisa sobre as tradições populares marroquinas, um tema abordado em seus outros trabalhos coreográficos.
Interessante notar que Ouizguen nomeia as tradições cantadas e a tradição oral como principais fontes de pesquisa, tradições ligadas à verbalidade, à palavra que passa de geração em geração. O recorte curatorial do Festival se traduz no espetáculo: vemos a relação entre movimento, palavra e discurso aflorar, pois é a partir do último, das ideias que inventam as tradições daquela cultura, que o movimento é criado e o que nos é apresentado é uma fala dançante das tradições revisadas por Ouizguen.
A tradição explorada no espetáculo trata da forma como a loucura é vista nos países árabes. Nessa parte do mundo, as palavras que categorizam os tipos ditos como loucos são tantas quanto os tipos de cura para esse “mal” – canto, rituais místicos e outras inúmeras formas de resolver a loucura. Diferentemente de nós, ocidentais, nesta cultura o louco é um agente com voz, não é excluído ou marginalizado. O escapar à norma tem importância e espaço na sociedade árabe. E, afinal, o que é a norma? O que é o normal em uma sociedade, ou o que é o esperado no palco? Não existe, são espaços em que a margem é sempre colocada a nossa frente, tencionando o quebrar com o padrão.
Um palco escuro estressa a norma, a ideia de que a dança traz consigo a obrigatoriedade do olhar. Mesmo quando a penumbra se instala no palco e começamos a perceber os movimentos, não existe norma. São movimentos que conseguimos reconhecer, cabeças que se sacodem para frente e para trás, mas que não nos remetem necessariamente para o que imaginávamos plausível surgir quando a visão se tornasse possível.
E esse movimento nos leva para que caminhos? Podemos encontrá-lo em espaços religiosos em que fiéis realizam suas preces? Ou sendo realizado por mães que lamentam a morte de seus filhos? Ou, até mesmo, em um show de música onde todos balançam seus cabelos em conjunto? O movimento que vemos no palco nos leva para diferentes cenários, ora de liberdade, ora de sofrimento, tortura. O movimento não pode cessar, não há espaço para cansaço ou desejo individual, ele segue em conjunto, é parte de um todo, compondo sentimentos de liberdade/tortura que presenciamos no palco a todo o momento.
Na cena estamos diante de corpos com formatos, idades e potências diferentes. Quando eles se revelam, um estranhamento acontece. Não são os clássicos corpos que nos vêm à mente quando pensamos em dança, mas, por fugirem do padrão, quebram com o esperado, realizam movimentos que nos surpreendem; corpos marginalizados, mas repletos de dança e expressão. Eles ocupam o espaço, libertam-se de ideias pré-concebidas e transitam livremente. Um corpo transbordando discurso, impregnado pelas vivências da cultura na qual ele está inserido.
Como citado anteriormente, o movimento do corpo nunca cessa, assim como as palavras entoadas ao longo do espetáculo. Mesmo com a ausência de luz impedindo o uso pleno de nossa visão – no começo do espetáculo tínhamos que nos apoiar em outros sentidos, já que a escuridão impedia o encontro de nosso olhar com o que estava acontecendo no palco –, a emoção passada pela entonação daquelas palavras se mantém, não é necessário o entendimento delas. Estamos todos unidos, nos tornamos um único corpo, um corpo que se espalha pelo mundo e mostra que a norma não deve ser a regra.