O foyer está repleto. Burburinho. A lotação se esgota. O público entra. Ficamos do lado de fora, eu e mais outros. Não conseguimos ingressos. Iniciamos uma conversa.
Uma mulher da produção do espetáculo se aproxima e pede para desobstruirmos a passagem, pois os atores passarão correndo pelo foyer. Logo depois solicita que façamos silêncio, pois as portas do teatro foram abertas, dando início ao espetáculo, e o som das vozes vaza para o interior.
Poucos permanecem. O primeiro performer passa correndo e sai do teatro. Em breve outro lhe segue correndo e também sai. E mais outro. A essa altura, as pessoas que estão no foyer decidem ir embora. Algumas vão para um bar próximo, devendo retornar ao teatro, pois trabalham na produção do festival. Decido voltar para casa.
Do lado de fora, vejo passar uma mulher correndo, ladeando o prédio do teatro. Sei que é uma performer, pelo que havia dito a produtora do espetáculo. A ela sucede um homem correndo. Este consulta o relógio e passa a andar, em vez de correr. Percebo, nesse momento, que há uma estrutura de tempo estritamente definida pelo diretor.
Não só o tempo é cronometrado. O espaço cênico é redefinido, abrangendo o lado de dentro e o lado de fora do teatro. Os atores correm, seguindo um percurso determinado de entradas e saídas do prédio do teatro.
Uma mulher que está na rua, e não ouviu as instruções da produtora, alerta: “Cuidado! Aqui estão acontecendo coisas muito loucas.”
*
O espetáculo concebido e dirigido por João Fiadeiro (Portugal), apresentado no Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto durante o Festival Panorama 2016, propõe uma forma narrativa inusitada, construída a partir de um questionamento das noções de tempo e espaço.
O título – O que fazer daqui para trás – nos coloca diante de uma indagação sobre o tempo. Ainda que a frase não se conclua com um ponto de interrogação – sinal gráfico que define gramaticalmente uma pergunta –, percebemos que o autor discute a natureza do tempo, e que isto se dá na forma de uma reversão. Esta não só se manifesta na reversão da pergunta que a sociedade nos coloca sobre o futuro, ao inquirir: “o que fazer daqui para frente?”, mas também na reversão da noção comum de que o tempo passa e o faz em direção ao futuro, ou seja, de que o tempo é um fluir para adiante.
No magnífico ensaio A história da eternidade, o escritor argentino Jorge Luis Borges discorre sobre a complexidade da questão do tempo, referindo-se às obscuridades inerentes a ele.
“Uma dessas obscuridades” – escreve –, “não a mais árdua nem a menos bela, é a que nos impede de precisar a direção do tempo. Que flui do passado para o futuro é a crença comum, mas não mais ilógica é a contrária, aquela que Miguel de Unamuno gravou em verso espanhol:
Noturno, o rio das horas flui
De seu manancial, que é o amanhã
eterno…
Borges considera verossímeis ambas as direções atribuídas ao tempo, no entanto impossíveis de serem verificadas. Uma terceira vertente apresentada pelo escritor é a do filósofo Bradley, e consiste em excluir o futuro, tomando-o por uma simples construção de nossa esperança, “e reduzir o ‘atual’ à agonia do momento presente desintegrando-se no passado.”
O espetáculo de João Fiadeiro tem em comum com a noção de Bradley a exclusão do futuro. Os espectadores são colocados diante de um presente em que múltiplas e breves narrativas passam como numa corrente, se vão e retornam transformadas. A imagem de tempo que mais se aproxima do tempo narrativo adotado por João Fiadeiro é a formulada por Heráclito: um incessante fluir. “Heráclito diz algures que tudo está em mudança e nada permanece parado, e, comparando o que existe à corrente de um rio, diz que não se poderia penetrar duas vezes no mesmo rio (Platão, Crátilo 402 a)”.
A divisão do espaço cênico entre interior e exterior é rompida para que os atores percorram o espaço de atuação circularmente, num fluxo incessante, à imagem de Heráclito. Estão a passar, correndo, se detêm diante de um ponto fixo no centro do palco, onde um tripé sustenta um microfone, de onde falam ofegantes.
Este modo de atuar remete a outra imagem do tempo, própria à época contemporânea: a sensação comum, diária, de que “corremos contra o tempo”, de que não há tempo suficiente para realizarmos as tarefas que nos propomos, de que a vida se transformou num correr incessante, do qual somos protagonistas sem lhe compreender o sentido. Quantas vezes comentamos que nem bem o ano começou e já está a terminar, sem nos termos dado conta de como isso ocorreu?
Há um estado agônico, como no presente de Bradley, estado que contamina o modo de narrar, fragmentando-o em múltiplas narrações que, ao passarem, se desfazerem e retornarem modificadas, exigem dos espectadores uma apreensão veloz e os colocam em permanente expectativa.
Somos levados a comparar o incessante fluir heraclíteo da narrativa ao modo como a informação nos chega no mundo contemporâneo: um jorro de notícias, um acúmulo de dados, que nem sempre somos capazes de discernir e organizar. Os gestos que acompanham as falas dos atores são banais, como os que usamos habitualmente para explicitar nossas falas. Os atores oscilam sobre as duas pernas enquanto falam, transmitindo inquietude.
No entanto, nesse turbilhão tudo está ligado por um fio:
“Olha, eu estou ligada por um fio”, diz a primeira performer a entrar em cena. Mesmo pessoas que não se conhecem, nem chegarão a se conhecer, mas que ela conhece – afirma a performer –, todos “estão ligados por um fio”.
E onde buscar este fio? Num possível sentido? A fragmentação da narrativa nos desautoriza a buscá-lo. Por outro lado, não há que buscar o oposto, ou seja, uma ausência de sentido. Há humor, o público ri muitas vezes, reagindo às falas. O texto parece expressar uma multiplicidade de sentidos que se entrelaçam, sendo este entrelaçamento o fio ao qual se refere. Cada espectador poderá encontrar seu fio, estabelecendo conexões a partir de suas experiências.
Retomemos Heráclito e sua concepção de um incessante fluir, da impermanência das coisas: “O mundo todo é visto como um fluxo incessante, onde só permanece estável e inalterável o logos (lei) que rege a inevitável transformação de todas as coisas.”
Haveria um substrato, algo que permanece, que insiste, e que, no espetáculo de Fiadeiro, não se define pelo logos, a lei, a razão (ocidental). Este substrato é o corpo. O personagem que discursa insistente e obsessivamente sobre o corpo é uma espécie de alter ego do bailarino e do coreógrafo. Seja ou não intencional, é interessante observar que ele se comunica em uma língua estrangeira (o espanhol).
O corpo tem sido estrangeiro ao logos, estranho a ele no pensamento ocidental. No entanto, se há algo de que não podemos nos desvencilhar é de nosso próprio corpo. O corpo é essa matéria que percorre muitos lugares em sua vida, colecionando sensações, reconhecendo-se nessas sensações, e que nunca é o mesmo, pois ao retornar já é outro, como na formulação heraclítea, expressa no fragmento 91: “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio.”
Em sua primeira inserção na performance, o personagem que discursa sobre o corpo entra correndo no palco e fala ofegante ao microfone:
O corpo passa cada vez por outros lugares, não é o mesmo corpo que antes, é um corpo que alguma vez foi e que, sabeis, é outro corpo, é outra coisa, são outras sensações, é outro ciclo, é outro fato que estais vivendo, não é meu corpo, é outro corpo que está sendo nesse momento e que está querendo ser de alguma forma, pelo que talvez alguma vez foi.
A mesma incerteza, a mesma inquietude, a mesma instabilidade permeia as sensações relativas ao espaço. A narrativa que sucede à anterior, enunciada por outro performer, revela:
“Eu me sinto … eu me sinto como um ponto no espaço que de repente pode ir pra qualquer lado.” ‒ E propõe um exemplo: uma partida de tênis e o momento em que a bola bate na rede e ninguém sabe para que lado cairá. “E é assim que eu me sinto … aqui … nesse teatro”, conclui.
O que fazer daqui para trás é estruturado como uma partitura musical, composta de falas e silêncios intercalados. Aproximando-se do final, os intervalos de silêncio vão se estreitando, até deixarem de existir, dando lugar a uma movimentação atabalhoada dos atores, em que um interrompe o outro, e as falas não se completam, por vezes sequer chegam a ser enunciadas. Ouvem-se respirações ofegantes, que aos poucos vão se acalmando, até que as luzes se apaguem, devolvendo ao público o silêncio.
Das múltiplas narrações que se sucedem no fluxo incessante e acelerado concebido por João Fiadeiro, destacamos uma como imagem de sua concepção de espetáculo:
A vida … A vida é sobre duas coisas: é simultaneamente sobre lidar com o imprevisto e tomar decisões. É como um jogo contínuo de peças, onde você fica à espera de peças muito grandes e você tem que receber essas peças e organizá-las no espaço. Mas tem uma coisa: quando as coisas dão certo, elas desaparecem.
O lado do avesso ou o avesso do lado.
Ao propor a ruptura da divisão do espaço cênico
entre espaço interior e espaço exterior,
fazendo com que os performers atuem num circuito,
dentro e fora do prédio do teatro,
João Fiadeiro abre a possibilidade (inusitada)
de fruir o espetáculo do lado de fora.
A que presenciamos?
Atores correndo em volta do prédio.
Nada dizem. Consultam seus relógios de pulso.
Nos damos conta de que há uma estruturação do tempo
precisamente definida que organiza o espetáculo.
Uma partitura de falas e silêncios.
Experimentamos o pulsar dessa partitura,
o andamento presto,
o vigor dos performers…
Quer do lado de dentro, quer do lado de fora,
estaremos sempre observando uma das faces do espetáculo.
Haverá, como para os que contemplam o céu
a partir da Terra há sempre um lado oculto da Lua,
haverá sempre um lado oculto da cena,
seja para os que a ela assistem, seja para os que nela atuam.
A face oculta remete à estória narrada por uma performer
que retorna à rua onde havia visto um grande muro
com inscrições de desenhos e palavras,
e percebe que alguém apagou o que se lia na véspera:
“Let’s pretend” (vamos fingir), e em seu lugar escreveu:
“Keep on dreaming” (vamos continuar a sonhar)…
NOTAS
-
BORGES, Jorge Luis. História da eternidade. São Paulo: Globo, 2001. p. 12.
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Ibidem
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Apud: IGLÉSIAS, Maura. Pré-socráticos: físicos e sofistas. In: REZENDE, Antonio (Org.). Curso de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/SEAF, 1986. p. 25.
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As falas dos intérpretes, reproduzidas no texto entre aspas, foram transcritas do vídeo do espetáculo, hospedado no site <https://vimeo.com/149488282>. Acesso em: 10 dez. 2016.
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IGLÉSIAS, Maura. Op.cit., p. 25.