Disabled Theater é o título do novo trabalho de Jérôme Bel; em livre tradução, teatro dos inválidos/incapacitados. Bel continua sua linha de trabalho focada na apresentação e na não representação. Porém, agora sem um nome próprio intitulando a peça, sem um único apresentador/relator/a(u)tor, mas com um nome que reflete um coletivo, os atores especiais do teatro Hora de Zurich.
Especiais em muitos sentidos. Primeiro, no sentido da palavra especial mais denotativo, daquilo que é diferenciado. Em uma segunda acepção, a criação permite que se torne mais evidente uma outra possibilidade do ser especial, principalmente pelo fato de todos estarem simultaneamente em cena o tempo todo, mesmo quando são espectadores de quem protagoniza. Também pela condução inicial do trabalho, que começa com cada ator permanecendo por aproximadamente um minuto cara a cara com toda a plateia, observando e sendo observado, sob um palco nu e ao som do silêncio, revelando, assim, apenas por caminhar e se fixar num ponto do palco, sua corporeidade, seus traços. Em alguns casos, sua timidez, seus desconfortos por estarem ali e, por conseguinte, suas alteridades e suas deficiências, sua posição de minoria, tudo aquilo que os torna especiais no sentido de diferentes da norma.
Bel, que já apresentou no Festival Panorama Isabel Torres e Cedric Andrieux, ambos sobre as trajetórias dos dois bailarinos que dão título às peças, dessa vez cria um espetáculo que permite múltiplas apresentações, trabalhando com não bailarinos. Nesta obra não epônima, não apresenta a trajetória profissional do grupo, mas sim a essência de cada um, de cada ator, sem máscaras, sem nenhuma representação; a tônica é a auto apresentação de cada um como indivíduo.
Há uma liberdade cênica que é balizada apenas por algumas proposições do autor. Em cena há uma pessoa que alinhava o espetáculo com proposições e intervenções que Bel pensou para construir e tecer a dramaturgia da obra.
Cada um dizia seu nome, sua idade e sua ocupação. Em seguida, cada um podia dizer sobre sua deficiência. Nesse instante, a plateia é brindada com explicações desde as mais científicas até as mais subjetivas e sinceras como um simples “não sei”.
Em se tratando de dança, Bel convoca cada um a criar um solo, com os movimentos que quiser, com as músicas que escolher. Coisas surpreendentes surgem sobre o palco, embaladas sobretudo por muita música eletrônica e pop. Este momento é o ponto alto, de maior manifestação do público e talvez o mais reflexivo para as questões da dança. Muitos solos têm em comum alguns elementos, como repetições, giros com os braços abertos e vigor cênico.
A esta altura, é nítida uma busca da maior parte dos participantes em mostrar e fazer algo que seja espetacular e, com isso, podemos vislumbrar o que é um senso comum na dança. Uma dança como uma entidade que não permite algo simplório, básico, cotidiano. Entramos na questão do virtuosismo, ele ainda visto como aquilo que dá legitimidade ao movimento sobre um palco enquanto dança? Embora não seja essa uma questão do espetáculo em si, é uma questão que ele suscita quando vemos o empenho em fazer algo diferente, incomum, incrível e difícil. Muito comum também em quase todos os solos é uma noção de grand finale. E o que esse empenho e a construção desses solos revela? Há um ponto forte que norteia o espetáculo, pelo qual somos apresentados e confrontados com nossos paradigmas, que são mais deficientes que os atores em cena: Bel nos apresenta um “apesar de”, pois, apesar de qualquer tipo de distúrbio ou deficiência, todos ali são seres humanos com capacidades incríveis. Por diversas vezes cogitei da minha cadeira: se esses movimentos fossem feitos por bailarinos, dentro das normas e padrões que consideramos enquanto sociedade como habitual e adequado, o quanto de potência isso teria? Haveria estranhamento? Haveria uma supervalorização e aplausos em “pontos altos” ou clímax coreográfico? A diferença deles torna o público e suas reações diferentes? São questões a serem discutidas e repensadas.
No que se refere aos participantes, este trabalho revelou elementos para reavaliar nossos preconceitos e pensar na “deficiência” como uma potencialidade a ser desenvolvida e não estigmatizada. É um choque de uma realidade que é soterrada, um tapa na cara da sociedade. É um manifesto dedicado a essas minorias, dando a elas voz, corpo e empoderamento.
Criativos e lúcidos, esses atores têm liberdade e um incrível senso de humor que arranca gargalhadas. No encadeamento do espetáculo, são ainda interrogados sobre sua visão sobre aquilo que fazem, sobre o que acham da peça da qual constituem o centro do processo. As respostas fazem passar do riso ao desconforto, nos confrontando com uma realidade onde eles mesmos – dando voz a si e a suas famílias – intitulam o próprio espetáculo de circo dos horrores e freak show.
Disabled Theater levanta questões relevantes sobre a representação da deficiência no domínio público e apresenta uma obra maravilhosamente viva, brutalmente honesta e altamente provocante.