Ha!, espetáculo de Bouchra Ouizguen apresentado no Festival Panorama 2015, começa no escuro, depois, levemente, passamos a ver imagens distorcidas de um branco-cinza-azulado que se movimentam. Movimento e som, som que é voz.
O som, o movimento, a voz… e começamos a entrar em transe. A loucura do transe.
A iluminação que muda o ritmo e o tom.
- Som e movimento
- Loucura
- Compaixão
- União e comunhão
- Morte
A loucura traduzida através do apelo à carne, ao desejo, ao corpo. O sexo reprimido. Ha! A vida em seu cotidiano. O que estas mulheres cantam é haram pelo simples fato de cantarem e a voz de uma mulher por ser sagrada não pode ser cantada em público.
Talvez seja aí o lugar subversivo das aïtas hoje. Mulheres que, para alguns, podem ser julgadas como profanas e, por outros, sagradas, que buscam um território para poderem se expressar sem serem julgadas, por isso o bordel/cabaré como lugar possível de expressão; longe dos julgamentos, mas próximas dos olhares famintos dos homens. Mulheres que transmitem pela oralidade a cultura folclórica do Magrebe.
A peça fala também desta união e comunhão, ou ainda, compaixão; entre as mulheres do islã, não é raro cenas em que vemos as mulheres juntas, dividindo tarefas e fardos de um mundo hipermachista.
Depois desta parte que denomino união e comunhão, as mulheres trocam sutilmente o jeito de amarrarem os seus foulards. Todas deitam – ou morrem –, mas a tradição persiste. A luz muda e elas saem. O som, a voz continua, ecoa, não perece.
Bouchra propõe uma experiência. Não há como sair do teatro neutro ou indiferente. Somos tomados pela emoção e pela experiência de algo que é real, trata-se de mulheres reais. A não ficção – que é justamente a escolha da coreógrafa pela narrativa cotidiana – nos leva para um outro plano, um plano mágico. Ou seja, é a contradição de tratarmos do real, mas o real também como potencialidade do mágico a propor experiências estéticas necessárias para pensarmos a realidade social em que vivemos.
Ao final uma mensagem de questionamento e de liberação para as mulheres: o foulard, elemento cênico central da peça, desaparece.
A partir do lenço, da sua mudança em ser amarrado e também no seu desaparecimento, podemos traçar a linha dramatúrgica da coreógrafa, que é marcada pelo início frenético da dança dançada pelo movimento da cabeça. O momento que denomino união e comunhão é quando os lenços são amarrados de maneira diferente, há uma mudança sutil entre essas mulheres. E, por fim, a mensagem do lenço que não mais existe, podendo suscitar uma mudança social e, por que não?, revolucionária entre as mulheres como um todo, a partir da qual as escolhas que afetam o corpo das mulheres sejam decididas pelas próprias mulheres, de maneira livre.