Corpo-fole: proposição em que a respiração é desencadeadora de fazer e ser levado a fazer, de controlar e ser controlado. Um início estático e em estado de espera é o prólogo para uma sequência respiratória sutil, mas hiperventilada que aos poucos se torna o ponto central de um grande sistema de retroalimentação de movimento, voz e a própria respiração. Em Fole, Michelle Moura explora esse sistema como construtor de esforço e ritmo.
A respiração foi escolhida como ponto de partida para o estabelecimento dessa retroalimentação. Hiperventilação que responde ao todo, que altera o corpo e que se altera em si mesmo, gerando espectros de variações rítmicas em consonância ou dissonância com o desenho sonoro criado pela própria respiração e pela voz que aos poucos é incitada e torna-se um elemento crescente e tensivo.
Sendo a respiração força motriz primária dessa condição, o movimento acontece num plano secundário e sequencial. Ações detalhadas, micromovimentos curtos e pouco acentuados ascendem progressivamente e expõem um processo formativo de esculturas cinéticas. A expansão energética conduz ao transbordamento, acentuado em voz e sua repercussão nela mesma e no corpo. Fole é, então, uma ferramenta de múltiplas respostas, de ação e reação. Um corpo que reage. O estímulo gera resposta, que altera o estímulo para um estímulo outro desencadeador de uma nova resposta, sempre crescente, até que um turbilhão energético esteja formado e o espectador se envolva nessa experiência como coexperimentador da situação. O caráter energético é também exposto pela progressão de nível que o corpo da bailarina experimenta: do chão ao nível alto, num corpo que se carrega e se reabastece para se manter de pé.
Trata-se de um trabalho tensivo, em que uma linha de tensão se estabelece no começo e se mantém em múltiplas parábolas até o fim, com espirais internos construídos no tempo e no espaço. O espectador interage sensorialmente e emocionalmente com a possibilidade intencional de criar significações e sentidos, e se depara com infinitas faces de instabilidade das ações sonoras, espaciais, fisiológicas e de movimento. Um fenômeno que tem sua manutenção na atualização das ações e sensações entre o dentro e fora, entre o corpo que responde e solicita respostas.
Michelle propõe uma dança que acontece no limiar entre o controle do movimento e seu acontecimento involuntário, paradoxo entre mover e ser movida. Um campo de vibração e caos, no qual a tensão se estabelece entre fazer e ser levada a fazer. É o “entre” vivo que faz parte do todo, material ou não. Um composto complexo de substâncias internas, aparentes, espaço e forças transparentes. Esse “entre” aparece como ponto de expansão para o surgimento do sistema de retroalimentação entre essas partes.
Ainda que com uma composição de movimentos que se organizam em planos transpostos, há uma dramaturgia que se constrói num princípio de encenação de suspensão do acontecimento em constante atualização. Por todo o período em que Michelle está em cena há uma espera, um estado de carga e apreensão, e o tempo sucessor tem uma composição similar, mas alterada dos instantes que o antecederam.
Fole deixa plena a defasagem e a diferença entre a mensagem ou informação intencionada pela artista e a decodificada pela plateia e por ela mesma. Essa dança não se propõe a explorar ou apresentar soluções ou organizações lógicas íntegras. Nem tudo está exposto. Há uma constante ansiedade no momento da experiência e pelo que está por vir.
Existe um elemento desorganizador, campo gerado pela montagem que não se articula de forma linear, mas que se instala sobre um princípio organizador. A performer transgride a coerência, a fim de colocar o espectador numa atmosfera alongada e ansiosa. Porém, Fole é uma criação coesa do início ao fim, numa plataforma coreográfica, vocal e respiratória.
Em Fole, Michele expõe uma relação limítrofe entre controle e descontrole, uma dança involuntária e controlada concomitantemente. Sistema de retroalimentação complexo, mas de princípio único: a respiração.