Entre o público e o domínio: aquilo que, perene, escapa.

Existe um modo com o qual a arte opera que se encontra entre a mortalidade, a originalidade, o tempo e como este compõe os trabalhos e fazeres que chamamos arte.

O valor de uma obra não é apenas resultado de seu caráter formal, mas também sua história ao longo do tempo, as relações políticas que se estabelecem ou que ainda podem se estabelecer.

Em alguns casos a forma da obra também pode ser a discussão destes aspectos, ou seja, a própria obra pode conter formalmente uma discussão acerca desses mecanismos de validação em seu próprio âmbito formal.

Apesar da relação íntima com a morte, com o desaparecimento, as artes (principalmente as canônicas) nos parecem ser algo perene. Que está e esteve sempre ali, presente na sociedade e na vida das pessoas. As obras se oferecem para uma permanência no tempo, tanto para serem esquecidas, desintegradas futuramente, quanto para serem eventualmente achadas e recuperadas como objetos propriamente ditos, mas também como registros ou rastros.

Podemos vislumbrar a importância dessa vontade de permanecia quando em meio a nossa vida cotidiana nos deparamos, por exemplo, com imagens, poemas e estórias que nos chegam pela tradição e pela oralidade. Mais ainda quando, por um instante percebemos estas presenças como constituintes de vida, de nossas vidas, afinal.

Esta dimensão daquilo que consideramos perene só pode existir justamente por estas relações. Ou seja, com aquilo que se move, que é passageiro. Uma dimensão que diz respeito à vida das relações, seus tempos e sobretudo suas políticas. No fazer e estar junto, no estar “com”, delimitado algumas vezes pelas práticas dos governos e dos jogos de poder, mas não tão somente.

Talvez um exercício de composição entre aquilo que se propõe perene com aquilo que sabemos passageiro. Uma composição dessas duas dimensões perpassa o fazer artístico. E por falar em composição, aproveito para pensar como isso pode ser relacionar com a dança: Se a arte é perene e os governos, assim como as relações, passageiros, onde se encontra esta perenidade na dança?

Em Domínio Público, trabalho que reúne Wagner Schawartz, Renata Carvalho, Elisabete Finger e Maikon K, apresentado na edição de 2018 do Festival Panorama, ensaia-se uma resposta artística ao momento político que o Brasil vive, onde se desenha um contexto de atualização da censura artística através de ataques moralistas voltados para as imagens dos artistas. A proposta estabelece relações entre as múltiplas interpretações projetadas sobre o quadro da Mona Lisa de Da Vinci e as projeções criadas pela sociedade sobre vidas, identidades e trabalhos dos performers em cena.

A imagem ampliada de Mona lisa (que não respeita as dimensões reais do quadro) permanece lá e conosco todo o tempo no centro do palco. Ela nos é oferecida para cada movimento de verificação que o olho faz ao acompanhar o discurso dos quatro intérpretes, que nos oferecem, ao longo da performance, uma enxurrada de informações que não sabemos se verídicas ou não.

Pelo acordo cênico ou pelo tom jornalístico das falas, tomamo-las como informações potencialmente verdadeiras, embora o desenvolvimento do discurso nos leve a duvidar. No fundo, não sabemos. Somos convidados a escutar aquela profusão de informações, mas porque impossível apreendê-las, duvidamos. Sabemos, por sua vez, que ali nos está sendo dada a ver uma cópia, mas mesmo assim o olhar inquire, interroga a imagem como se ela fosse verdadeira, a original. A imagem esta ali, “parada”, embora nem tanto, a nos olhar enquanto esquecemos de duvidar de sua originalidade. Talvez a originalidade não importe tanto.

Talvez interesse perceber que a peça nos propõe um modo de relação com essa imagem que conhecemos tão bem e ao mesmo tempo nem tanto assim. Não a conhecemos, porque não a apreendemos. Nem a verdade de sua história, nem a própria imagem. Aquilo que pensamos já ter apreendido e que pode por sua vez parecer estático, na peça e no encontro proposto por qualquer coisa que seja pública, ganha movimento, pode dançar: Existem momentos em que um corpo que parece, em um primeiro momento, estático é convidado pela encenação a imprimir movimento em nossas retinas.

Algum momento como este também acontece em Entre, espetáculo com concepção e criação de Datan Izaká. Parece-me que toda a dança, ou a movimentação proposta pelos três intérpretes: Helen Mesquita, Daline Ribeiro e Ireno Gomes, são disparadores para que aqueles três corpos encontrem sua forma não antropomórfica, ou seja, diminuindo todo “entre” do espaço possível entre três corpos, o que temos?

Uma massa de gente, mas que não é tão gente assim. Perde-se o contorno do corpo, do indivíduo, temos um corpo massa que estabelece um tipo de movimentação específica e que deixa vazar rastros de formas humanas: um pé, uma mão, uma bunda ou um cotovelo. O que permanece é essa massa de gente que ainda respira, mas pouco se move após tanto se sacolejar. Então a massa de gente, inerte, se oferece a incidência de uma determinada luz.

Pelo decorrer da cena essas duas coisas, a Mona Lisa e a massa de gente, que podem ser imagens, vêm a ser imagens também pelo apagamento. A iluminação nesses dois espetáculos, em algum momento se assume como algo escasso, propondo outra experiência do visível, que entre a visibilidade e o breu acaba percebendo e enxergando movimento onde antes não havia. Diante de uma imagem ou objeto que se oferece como perene sente-se principalmente a passagem do tempo.

Apenas quando as luzes começam a se apagar, quando começamos a perder de vista Mona Lisa é que, enfim, ela pode começar a se mover apesar de toda a informação que recebemos e não apreendemos sobre a imagem. É na borda do breu total que podemos vê-la dançar, mas nem aí, neste momento a apreendemos.

Por outro lado, a política, desconfio, não se pode fazer pela perenidade. A política como fazer incansavelmente comunitário das relações e dos domínios púbicos precisa ser um dispositivo radical ligado à temporalidade dos jogos de força imbricados na própria política. Se torna-se imagem apreendida, algo se perde. É na esfera daquilo que é público, onde a relação comenta, que o perene nos escapa.

Alguém tem algum comentário?