Em Dub Love, os bailarinos François Chaignaud, Cecília Bengolea e Alex Cephus desmistificam a formalidade e a tradição do balé clássico. Em meio a um grande sistema de som, os três dançarinos, vestidos com collants cor da pele e com sapatilhas de ponta, experimentam gestos que parecem saídos de rituais religiosos ao som de um remix de dub e reggae criado pelo DJ High Elements. É a desconstrução do balé clássico dançado na ponta diante da música vibrante e impactante saída dos guetos.
Inicio com essa citação do site do Festival Panorama 2016 sobre o espetáculo Dub love, da Compagnie Vlovajob Pru (FRA). Com ela, imediatamente me vêm as questões: quem disse que estes gestos saíram dos rituais religiosos? Quem disse que este tipo de música saiu dos guetos? Não saíram, estão lá! Talvez tenha sido só uma escolha ruim de palavras, mas me fez pensar no texto que agora escrevo.
A descrição do espetáculo que se encontra no programa é instigante, mas também irritante; a própria peça traz imagens muito potentes e problemáticas, ao mesmo tempo. Pensando nisso, parto da difícil relação entre o balé e o ritmo jamaicano para propor algumas reflexões sobre Dub love.
Comecemos olhando para a cena: um palco não muito grande com caixas de som parecidas com as de baile funk e um DJ com suas pick-ups. François Chaignaud está em cena numa postura parecida com a de um grand-plié e ele fica ali por um tempo – quase estático, numa resistência cheirando a virtuose. Após alguma tensão, a postura é transformada e aparece Alex vindo de trás das caixas de som. Ele faz seu trajeto pelo palco em cima das pontas de suas sapatilhas. Seu corpo está curvado, a coluna como uma grande letra C, e suas mãos estão apoiadas nos joelhos: remete a uma figura cansada. Então, Cecilia também sai de trás das caixas nas pontas dos pés e gira em torno de si mesma nauseantemente.
Há um jogo (ou estou chamando de jogo) entre essas três figuras, o cenário e o DJ. Isto se dá de uma forma previsível: eles dançam separados no palco, depois eles dançam juntos no palco, e eles cantam num microfone, um seguido do outro, como se fossem MC’s – e enquanto um canta, outro dança, outro descansa. Entram e saem de trás das caixas e às vezes olham para o DJ. Em algum momento desse jogo, uma música começa a tocar e os corpos treinados pelo balé clássico dançam conforme o ritmo. Existem mesmo – como diz o programa – gestos ritualísticos retirados da cultura africana, que se notam pela coluna em estado de cobra e pelo quadril desencaixado, mas raros são os momentos em que a sapatilha de ponta deixa de ser uma preocupação. Por isso, o ritual não passa de uma forma estética.
Além disso, também como parte do ritual estético, existe um elemento fundamental na cena: a música dub, originária do reggae jamaicano. Este é um som grave, profundo e escuro, assim como as pessoas que o fazem. Em contraposição, temos em cena corpos clássicos, eretos, leves e virtuosos. O encontro da “alta com a baixa” cultura – no sentido do senso comum, alta cultura como a clássica e erudita, e a baixa cultura como a popular, de massa – afunda os quadris, contrai os abdomens, arredonda as colunas, mas não empurra definitivamente os intérpretes das sapatilhas de ponta. Por isso, afunda até certo ponto, como o espetáculo de modo geral, e era aí que eu queria chegar.
Os criadores desta peça trabalham com ideias dicotômicas: o balé clássico aqui será tido como uma dança da Europa, de técnica rigorosa, vista em palcos, feita majoritariamente por brancos. A música dub é jamaicana e suas manifestações se dão em festas de rua promovidas por negros. Ela está na cultura Hip Hop assim como o DJ, o Bboy, o grafite e o MC. Dito isto, lanço a seguinte dúvida: como se dá o encontro transcultural na cena contemporânea de Dub Love?
Primeiro: há quatro pessoas em cena – um deles é negro –, todos vestidos de collant e sapatilhas correspondentes à cor de suas peles, menos este homem negro. Todos os três bailarinos aparentam provir da dança clássica e tentam sustentar esta técnica (pelo menos nos pés) mesmo com uma música que mobiliza outro tipo de dança. Mas, depois de variadas repetições da mesma célula coreográfica, eles descem da sapatilha de ponta e querem dançar com seus corpos bailarinos como nas festas de rua jamaicanas. Descem e voltam para as pontas dos pés. Esse movimento mobiliza assuntos em alta: como um corpo pode transitar entre as diferentes formas de mover? Como a dança clássica tem incorporado os elementos da cultura de massa e da cultura popular e se tornado contemporânea? A dança clássica está se esgotando. Isso não significa que ela não deva ser feita. As danças – e toda forma de cultura popular, de modo geral – estão ocupando os espaços que querem e precisam. Isso não significa que todos devam dançá-las.
O espetáculo se propõe a pensar o lugar do balé a fim de desmistificá-lo e assim torná-lo contemporâneo. Para romper com o balé, ele passeia por outras culturas que por muito tempo foram marginalizadas. A partir disso, percebo que o grande incômodo que esta exploração traz é: quem pode se apropriar do quê? Para ilustrar essa questão, trago o seguinte exemplo: Nina Simone – pianista, cantora, compositora e ativista pelos direitos civis dos negros norte-americanos – queria ser pianista clássica, mas não foi aprovada no Curtis Institute por ser uma mulher negra. Puseram-na “no seu lugar”, ou no único lugar que achavam que ela poderia ocupar (mesmo sendo uma cantora e pianista excelente): blues e jazz. Anos mais tarde, o instituto deu título honorário à cantora por sua contribuição artística. Por que determinar o lugar do dub e da cultura urbana hoje? Há o lugar do negro?
Trago nesse texto muitas perguntas relativas à minha experiência enquanto dançarina e estudante negra. Não pretendo dar respostas a elas, mas instigar reflexões – até mesmo incômodos. Para isso, penso: a arte enquanto forma política precisa problematizar o que é posto em cena, portanto o uso do balé em detrimento da cultura afro deve ser feito com cuidado. Isso porque estamos vivendo um momento em que os negros estão se apropriando de espaços – antes negligenciados – na cena contemporânea a fim de subverter, inclusive, o tão clássico balé.
Com a intenção de que sejam revistos alguns privilégios, deixo mais uma pergunta que não quer calar: quem é que diz quem pode dançar o quê? No mundo ideal, desejamos que não haja lugar determinado para ninguém, mas os negros tiveram e ainda tem muitos lugares pré-estabelecidos, inclusive dentro da dança clássica – o lugar à parte.