Foto: CLAP /
Tomado pela natureza exuberante do Parque Lage no Rio de Janeiro, o público visitante do espaço neste dia também foi agraciado com a apresentação de One, One, One, de Cie Ioannis Mandafounis, da Suíça, dentro da programação do Festival Panorama 2017. Apresentado sempre em locais públicos, a participação de quem assiste a essa obra é fundamental.
Dois bailarinos, duas cadeiras. Cada um deles dança interagindo com aquele que se dispõe a sentar na cadeira a sua frente. Um de cada vez. Os artistas traduzem as emoções dos espectadores em forma de dança. O olhar é o fio condutor da movimentação dos performers. O que mais se destaca aí é a abertura de possibilidades de um estar-junto, o encontro entre observador e obra, a elaboração coletiva, mais do que uma interpretação certeira de um sentimento ou emoção de alguém ou até mesmo uma coreografia previamente resolvida. A dança, hoje, cria espaços livres, gera durações com ritmo contrário ao das durações que ordenam a vida cotidiana. Uma dança de improviso que se faz única a partir de cada um que participa dela, uma forma de coreografia do olhar. Recepções traduzidas no corpo. Em One, One, One, espectador é um prolongamento do corpo-dançarino num processo experimental. O espaço da dimensão dançada apaga as fronteiras da corporeidade e do tempo. Esse outro tempo rompe com a linearidade dos fatos e do movimento.
One, One, One surpreende tanto os desavisados da existência de um festival de dança no parque, quanto os que foram lá especificamente para vê-la. Acontece ali uma quebra do espaço cênico convencional que nos aproxima a todos. Favorece um intercâmbio humano diferente daquele que ocorre nas zonas de comunicação que nos são impostas normalmente. Se empenha em investir e problematizar, assim, a esfera das relações contemporâneas e a forma como as artes em geral são produzidas.
A composição da cena envolvia a luminosidade de uma manhã de sol, a temperatura ligeiramente elevada e os cheiros da natureza. O prazer já se instalava. Não menos prazeroso foi entrar em contato com aquela movimentação inusitada, direcionada a apenas uma pessoa sentada na cadeira. Como se fosse só para ela, um presente em movimento. Mas também era para todos nós, que assistíamos. Estávamos conectados ali.
O fazer e o estar em One, One, One vão na contramão do que Guy Debord chama de “sociedade do espetáculo”, onde as relações humanas não são mais diretamente vividas e se afastam em uma representação espetacular. Escreve Deborb:
O mundo ao mesmo tempo presente e ausente que o espetáculo apresenta é o mundo da mercadoria dominando tudo o que é vivido. O mundo da mercadoria é mostrado como ele é, com seu movimento idêntico ao afastamento dos homens entre si, diante de seu produto global. A perda da qualidade – tão evidente em todos os níveis da linguagem espetacular – dos objetos que louva e das condutas que regula, não faz outra coisa senão traduzir as características fundamentais da produção real, que repudiam a realidade: a forma-mercadoria é de uma ponta a outra a igualdade, a categoria do quantitativo. É o quantitativo que ela desenvolve, e ela não pode desenvolver senão nele.[1]
Muito ao contrário disto, o convite feito à plateia é acolhido e a experiência é vivenciada de forma espontânea onde as relações humanas se mantêm fora de padrões estipulados e mercantis.
Noto que a pessoa sentada em uma das cadeiras chora, muito emocionada e atenta. Foi “tocada” profundamente. Os performers atuam de forma exaustiva, e ventilo a possibilidade de sentar numa das cadeiras. Mas eles estão exaustos! Será que devo? Espero ansiosa minha vez de colocar o meu corpo, o meu olhar, como campo de criação. A plateia é diversificada e a interação com a movimentação dos corpos dançantes é forte. Não acontece só para os que se sentam lá. Crianças dançam próximas às cadeiras. Estamos contagiados. Decido participar mais a fundo e finalmente me aproximo de uma das cadeiras. Pergunto à dançarina se ela não teria a necessidade de descansar um pouco. Ela nega, pergunta meu nome e diz o dela: – Emilia. Em seguida me orienta esclarecendo que, a qualquer momento da performance, posso me levantar se assim desejar.
A partir daí, o contato visual não se perde em nenhum momento. A conexão é intensa e, no improviso dela, eu me vejo. É estabelecido um caminho de troca onde, por mais que ela se afaste, correndo ao longe, explorando as dimensões do parque, aquele fio condutor não se rompe.
A corporeidade de estrangeiros europeus, já com a pele avermelhada pelo calor, é bastante diversa da nossa, apesar da estética do contemporâneo tentar nos globalizar. Esta característica, essa diversidade, contribui para o interesse e magnetismo gerado. Graças a todas as mídias atuais e canais de informação disponíveis, a sociedade vive um momento de globalização de corpos, pensamentos e comportamentos. Mas por mais que este fator esteja presente em nós, o corpo guarda e exala características culturais que denunciam um estar no mundo característico e peculiar com sua história. São diferenças e sutilezas que se evidenciam e que mantém uma resistência, voluntária ou não, à estética globalizada.
Então você se emociona, a troca emociona. E o improviso, em função desta conexão particularizada, atrai. A abertura para o inusitado. Improvisar é imaginar com o corpo, penso.
James Hillman, psicólogo e analista junguiano, coloca a improvisação em dança como um terreno propício ao trabalho com as imagens, como ferramenta para criar espaços internos, criar corporalidade, dar volume à psique, agenciar desejos e, assim, criar novos enredos, lançando-se aos devires[2]. O devir-dançarino corresponde a uma nova forma de subjetivação em constante movimento. Trata-se de “involuir”, segundo Hillman, dissolver as formas e as certezas do corpo que dança, para a construção de novos gestos e novas expressões.
Numa escala aberta, enquanto um corpo experimenta seguindo um estímulo que foi dado, os acontecimentos em curso promovem descobertas, estimulam novos repertórios, ampliam a percepção e instigam a se lançar no espaço de modos não previstos nem predeterminados. Desse modo, movimentos irrompem criação.
Ficamos nós, plateia, com a noção reforçada que podemos nos expressar mais corporalmente, que esta expressão pode ser feita no parque, nas ruas, nas praças; que nossos corpos têm muito a dizer e não deveríamos abdicar deste poder. Então, num ímpeto durante a improvisação, num momento em que a dançarina está bem próxima de mim, como que provocando uma reação, me levanto da minha cadeira passiva com a intenção de sair dançando com ela pela alameda do parque! Mas não!, isso não acontece. Não sei se por causa do meu joelho contundido ou por ter sido pouco claro meu improviso…
Enfim, abraço de despedida e libero a cadeira para o próximo “partner”…
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Beatriz Veneu é formada em Comunicação Visual pela PUC Rio e atualmente estuda Teoria da Dança na UFRJ, com interesse especial em corporeidade afro-ameríndia. Participou das Imersões do LabCrítica no Festival Panorama em 2016 e 2017, e da publicação Performar Debates, que reúne textos produzidos durante as imersões do Laboratório de Crítica no Festival Panorama, edições de 2012 a 2016.
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[1] DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Ed. Gallimard, p. 29.
[2] Ver: HILLMAN, James. Estudos da Psicologia Arquetípica. São Paulo: Ed. Archiame, 1981, p. 45.
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© Texto produzido durante a Imersão LabCrítica no Festival Panorama 25 + 1. <<Saiba mais!>>