Noite de estreia da Cia. dos Pés, no Teatro Sérgio Porto, apresentando-se pela primeira vez no Rio de Janeiro, e já no Festival Panorama 2015. Sua coreografia: Dança baixa.
Lá fora chovia muito, esperávamos na antessala e aos poucos chegava o público que nesta noite se dividia entre Alagoas e Alemanha, que, na pessoa de Raimund Hoghe, nos provocava com sua Judy Garland, bem longe dali.
Meus pensamentos voavam entre polos opostos. Por que minha escolha em assistir ao trabalho de grupo para mim desconhecido? Como seria tocada por uma proposta vinda de fora, que também interessava por coisas baixas, pequenas, também longínquas?
Releio o encarte do Panorama, apreendo que esta companhia foi criada em 2000, é dirigida por Telma César, e que “Dança Baixa investiga o tempo que destinamos a nós mesmos e nossa capacidade de mergulhar em nossa história e cultura”.
Ouvi a voz de aviso para entrarmos… O pedido para sentarmos nas cadeiras em volta da cena e ocuparmos prioritariamente os lugares mais perto dos dançarinos.
Entrei finalmente e me sentei numa das cadeiras enfileiradas diante de um chão demarcado por um linóleo branco, em forma de uma arena quadrada, grande. Uma luz forte acentuava aquele espaço e, nele, dois homens e uma mulher, nus e em pé, já estavam dispostos numa formação triangular.
Reparei que ficamos sentados muito próximos dos dançarinos, e que uma intimidade, que estranhamente se instaurou, nos envolvia na diferença grande de estarmos todos vestidos, presenciando aquela imobilidade desnuda, preenchida de luz. Aquele linóleo reluzente e branco remetia-nos a uma arena de boxe. Mas os três jovens ali continuavam sem se mexer e de olhos fechados, em silêncio, com suas roupas jogadas a sua frente; proporcionavam, assim, uma pausa inusitada naquela entrada de público esbaforida, e ficaram muito tempo assim. A plateia contida aguardava. Um tempo depois, passo a perceber micromovimentos das mãos de cada dançarino, sobre seu próprio corpo, como um deslizar. Muito lentamente, este gesto se sucede como delimitando/desenhando espaços, entre aquele corpo e o todo da cena, uma espécie de figura e fundo recortando-se, distinguindo algo vital que cada um continua a procurar, sempre, neste vasto mundo.
E se eu me chamasse Raimundo? Só uma rima… Mas, o que estamos fazendo do nosso tempo? Quem sou eu aqui? Estávamos divididos entre não vestidos e vestidos, novamente entre o Nordeste e Alemanha, emergentes e Primeiro Mundo, Brasil e Europa. Que tempo temos pela frente para pensar sobre estas questões binárias tão arraigadas em nosso corpo?
Logo, os gestos deles se ampliam… Mesmo assim, continuam de olhos fechados, silenciosos e sem locomoção.
Sinto minha respiração, quero tossir, perdi minha carteira de dinheiro… Minha atenção volta para os três dançarinos em cena, percebo seus novos movimentos de pequenas contrações sinuosas com a coluna vertebral, de frente, de lado… e um som, suave, acionando-se numa mesinha comandada por uma moça, situada numa das esquinas das cadeiras que ladeavam aquela arena quadrada.
Aos poucos, tudo em fluxo na cena, som e movimento. Cada dançarino inicia amplas e extensas sinuosidades, articulando muito sua coluna vertebral, ainda no seu próprio eixo. E, então, passam a vestir aquela roupa jogada no chão, a sua frente, peças cotidianas, coloridas. Iniciam um movimento de rodopiar que se sucede e aumenta… Rodopiando e rodopiando, vão abrindo os olhos, vão rindo e evoluindo, ocupando o espaço, abrindo os gestos e se relacionando qual um jogo de crianças entre o sonho e a fantasia até o êxtase. Um jogo de adultos sem falas, com tropeções e quedas, como se se ferissem. Então, em duplas cuidam daquele que caiu… e retornam. Agora, com um som que surgia e aumentava, de aboios… de agouros… de sertão… gerando mais movimentos, mais e mais.
Seria uma terra sendo arada? Bichos que se locomoviam, corpos que se chocavam e que rodopiavam, que pulavam, que intensificavam uma movimentação que remetia a cavalgadas, saltos, frevos, requebros, graça, jogos e desafios… Beleza e encontro, um por cima do outro, desvarios, um salto, um volteio. Intensificado-se, rudeza, beleza… Cada um desafiava o outro com sua partitura de movimentos, muito rápido, saltos fortes, arrastadas de joelhos, pernas alongadas em movimentos espichados pelo chão… Uma espécie de rastejar de calangos, uma dança.
Encontros rudes quando suados, em lutas e desafios, intensificando encontros e desencontros, rolam no chão. Sons de todos. Intensidades. Voltam a se mexer lentamente… e revertendo esta nova situação de encontro dos corpos, um novo jogo de esgueirar-se, quando começam a tirar a roupa do corpo do outro. Ficando nus de novo, sucessivamente ficam sem camisas, calças e, logo no chão, esgotados. Agora deitados… formando uma fileira… nus, encostados uns nos outros, conchinhas acalmadas, finalizam a movimentação.
A plateia reagiu com palmas, Em seguida, ouvi uma fala vinda da mesinha no canto da arena: se vocês quiserem, eu gosto de conversar… Mas eu saí a procurar minha carteira com meus documentos perdidos e não pude ir até eles.
No domingo, na plateia de outro programa do Panorama, dei de cara com a moça do som e com um dos dançarinos da Cia. dos Pés, ali na minha frente. Reconheci-os e literalmente tomei meu tempo. Conversamos muito.
Eram eles, Telma César – direção, trilha sonora, preparação corporal ‒ e Regis Oliveira – dançarino e figurinista, que generosamente falaram sobre Dança baixa como um processo longo de trabalho. Eu, muito curiosa sobre a trajetória da dança contemporânea em Alagoas e querendo conhecer mais como tem sido “trabalhar a capacidade de mergulhar em nossa história e cultura”, ou quais os desafios encontrados no “diálogo entre a dança contemporânea e as danças tradicionais e populares” conforme a Cia. dos Pés apresenta em seu encarte no Panorama. Uma conversa enquanto esperávamos o fechar das luzes… Ainda deu tempo de perguntar, por que Dança baixa?
Ela me respondeu: “politicamente somos desconhecidos… Só o circuito Rio/São Paulo aparece”.
Não pude deixar de associar: por volta do séc. XII, é muito difundida na Europa, a Basse Dance, de acordo com Paul Bourcier, em História da dança no Ocidente (1987). Uma espécie de categoria geral, que se aplicava a todas as formas de danças executadas próximas ao solo, e que teve um papel muito importante na evolução das danças pré-clássicas. Associada em suas origens à vida campesina, a visibilidade de muitas destas danças passam a ser distinguidas nas cortes italianas e francesas, onde reis e senhores apreciavam seus desenhos, notadamente pelas formas que esculpiam no chão.
Sim, desta vez, no Sudeste, podíamos assistir a Alagoas dançando no Panorama 2015, neste ano das crises políticas se alastrando pelo Brasil, dos suportes e apoios institucionais minguados. Ao lado de representações internacionais de Alemanha, Croácia, Inglaterra, Itália, Marrocos e Portugal, além das nacionais de Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo, temos este grupo do Nordeste. Lembro que em outras edições do Panorama, vieram grupos do Piauí e do Ceará, por exemplo. Como aves de arribação, pousam por um momento nestas terras que estranhamente lhes observam, ocupando talvez aquele mesmo lugar do bizarro que nos interessa na medida que se aproximam, modelando sua cultura local com os ventos fortes do contemporâneo.
Despeço-me da Cia. dos Pés, mas levo comigo um cartão do seu blog. Conectada, posso ler sobre diversos entrelaçamentos que despertam minha atenção, recordando o que me impactou neste primeiro contato com eles. Esta primeira Cia. de Dança Contemporânea de Maceió surge a partir do processo de criação de Pé, umbigo e coração, espetáculo desdobramento da pesquisa de mestrado de Telma Cesar. No rastro deles, existiu anteriormente o Grupo da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), desfeito em 1984, fruto de uma articulação com a Universidade Federal da Bahia (UFBA). Neste período, através de oficinas e intercâmbios, implementam-se em Maceió diversos resultados cênicos e processos de criação de espetáculos que afirmam estes novos conceitos de “laboratórios de movimento, domínio e consciência do corpo, relações de espaço, tempo, improvisações livres com motivações em textos”.
Mais recentemente, surgem diversos enfoques para a dança contemporânea de Maceió, destacando-se a parceria com Jorge Schutze, a partir da sua vivência no Japão, entre 1989 e 1991, e agregando-se novos sentidos como a performatividade e a ocupação dos espaços urbanos.
E, finalmente, a Cia. dos Pés apresentou, em 23 de novembro, um novo trabalho, o espetáculo de dança Nuvens enraizadas, contemplado com o Prêmio Funarte Artes na Rua 2014, ocupando lugares diferentes no centro de Maceió, no Viaduto João Lyra, no Viaduto do Cepa e no Calçadão do Comércio.
Diz o grupo em seu blog: “Um dos objetivos da intervenção é propor a alteração da experiência do tempo sobre o espaço urbano, apropriando-se da ideia de conhecimento sugerida pelo educador Jorge Larrosa, na qual experiência é ‘aquilo que nos acontece’ e não aquilo que se passa sem deixar rastro (vestígios no corpo).”
Não seria tudo isto fios que partem da cena visitada em Dança baixa, um extenso material para uma reflexão sobre a dança?
Penso nos processos de criação de grupos que entrelaçam palco e produção de saber nas áreas da pesquisa em dança e na relação com o ensino superior no Brasil. Os anos 60 trouxeram, desde a Bahia, a partir de uma forte influencia da dança expressionista alemã, esta realidade. E, nestes últimos anos, o alcance destes processos tem se expandido. São fios que falam de dança, educação, cultura, estética, ontogênese. E dança. Provavelmente estamos criando características próprias neste Brasil grande e multifacetado. Mas, ao mesmo tempo, somos atravessados por questões repetitivas e até persecutórias. Estamos mais conscientes do nosso corpo? Por que fazer uma dança que nos conecta e deixa rastros e vestígios?
Como participante do Laboratório de Crítica 2015, trago estas questões que continuam ao meu redor. Faço vênia e tiro o chapéu para esta experiência multiplicadora que a direção do Panorama tem desenvolvido nestes anos de atividade. É importante nestes tempos contemporâneos. É quando as propostas de Alagoas e do Rio de Janeiro se encontram. Assim, por último, pinço no blog. da Cia dos Pés esta frase/conceito sobre os desejos, que parece ecoar no Rio de Janeiro: “Não só se apresentar no palco, mas interferir no meio da dança e no meio que se está construindo na cidade…”
NOTAS
-
Ver: <http://companhiadospes.blogspot.com.br>