O Festival Panorama, que em 2016 celebra 25 anos de realização, trouxe na sua noite de abertura, e reapresentou no dia seguinte, uma homenagem a Angel Vianna.
Figura célebre no cenário carioca e nos palcos do Panorama, Angel foi homenageada por dez de seus discípulos e discípulas. A própria Angel assina a direção artística da obra.
Num espetáculo no qual a memória é o eixo condutor da dramaturgia, vemos performances de grandes nomes da dança contemporânea carioca homenageando Angel: Alexandre Bhering, Alexandre Franco, Esther Weitzman, Frederico Paredes, Luciana Bicalho, Marcia Feijó, Marcia Rubin, Maria Alice Poppe, Paulo Mantuano e Teresa Taquechel. Muitos desses artistas foram, e ainda são, responsáveis pela formação de diversos profissionais de dança na cidade.
O que eu mais gosto é de gente parte não só de memórias individuais, mas de uma história coletiva compartilhada pelos intérpretes e que diz respeito à sua formação em dança, onde Angel se faz figura central. Todavia, ainda que pautado sob questões comuns a todos e a todas, o espetáculo, em sua estrutura e composição, se constrói a partir de uma dramaturgia que parece partida, pouco coesa e não totalmente compartilhada por quem dança e coreografa a obra; uma reunião de fragmentos de memórias. São solos, duos e trios apresentados em sequência pelos bailarinos, como que feitos individualmente e então gentilmente orquestrados um após o outro num espetáculo. Como uma mostra de dança para Angel. Os solos, duos e trios, ou mesmo as coreografias de todo o grupo, que abrem e fecham o espetáculo, dão um tom de corte e colagem à obra, estratégia possível e razoável, mas que em O que eu mais gosto é de gente se apresenta com grande destaque, sobretudo se nos ativermos às questões da obra e à sua escolha pela curadoria do Panorama como, nada menos, a peça de abertura da programação do festival.
Entender as potências e a importância histórica de Angel e de todos os profissionais envolvidos é fundamental para pensarmos sobre nossa recepção a um espetáculo que se faz frágil dramaturgicamente em função de sua estrutura. Cada corpo em cena “conta” sua história com Angel e para Angel, que assistiu à obra sentada na primeira fila do Teatro Carlos Gomes.
Dançar para a mestra Angel Vianna é tarefa que se cumpre bem. O espetáculo, não literalmente, funciona como uma grande sala de aula de dança num dia de prova: Angel, a professora, assiste à performance de seus alunos e alunas enquanto o resto da turma (toda a plateia) a acompanha. Mas um fato que parece pouco pensado é que, para muita gente na plateia, aquela era a primeira “aula de Angel” na vida. Olhos mais atentos e menos apaixonados distanciaram-se da obra, como um aluno novo numa turma muito integrada.
As entradas e saídas de cena de cada intérprete foram acompanhadas por enxurradas de aplausos que, mais do que reconhecimento pela qualidade dos trabalhos, expressavam a simpatia e amizade pelos seus: o público aplaudiu seus mestres e mestras, seus professores e professoras, seus colegas de trabalho de muitos anos. Mas houve pessoas na plateia, aqueles alunos novos numa turma desconhecida, que aplaudiram só por educação mesmo. E esse fato ficou bem claro para muita gente em algumas conversas de foyer sobre a obra!
As homenagens e o reconhecimento da importância de um trabalho como o de Angel é fundamental nesses tempos de grande desvalorização das artes, não só no Rio de Janeiro, mas no país como um todo. Ainda assim, é importante pensar nos lugares que alguns de nós ocupam e que nos permitem, por exemplo, dirigir um trabalho em homenagem própria ou ter um público de alcance já definido no momento em que a obra é concebida. Essas são escolhas políticas não só da obra, mas também da curadoria.
Quem sobe ao palco também pauta escolhas. Ou mesmo oportunidades. Os artistas e as artistas em cena são homens e mulheres brancas que há muitos anos tiveram e ainda tem a oportunidade de estudar com Angel e ser, junto a ela, parte do que pode ser considerada uma “elite da dança carioca”. Quem naquele palco subiu é tido como responsável por pautar o que é (boa) dança contemporânea na cidade e fora dela. Gente com possibilidade de acesso e fala num cenário de dança que ainda possui traços de exclusão e poucas oportunidades a todas as vozes, corpos e danças em uma cidade tão plural como o Rio de Janeiro. O que eu mais gosto é de gente mostra como e a quem prestamos homenagem hoje. Mas como dançar daqui para a frente? Homenagear e reconhecer é importante, mas será que dá para fazer isso sem que nossos atos virem aulas particulares de uma escola em que nem todos entram? Angel ainda não é para todos, bem como não o foi sua homenagem.
Olhar menos apaixonadamente para este trabalho (ainda que ele fale de paixões!) é permitir-se pensar para quem estamos produzindo dança e junto com que plateia queremos dançar, enquanto espectadores e fruidores de um trabalho que talvez não tenha classificação etária, mas que, nas suas entrelinhas, traz muitas outras classificações.