Foto: Renato Mangolin /
Dança Macabra, de Laura Samy, artista e coreógrafa carioca, traz já em seu nome um arrepio. Logo que ouvi o título da obra, relações entre macabro, medo e morte imediatamente povoaram minha imaginação. Mas por que uma pessoa elege a morte para criar uma dança?
Vi o espetáculo pela primeira vez em 2015. Em um palco quase nu, com a luz aberta, Laura carrega pesados cubos de madeira, os sobrepõe e constrói cuidadosamente duas colunas na boca da cena, quase nas extremidades direita e esquerda do palco. Então, se coloca atrás de uma das colunas. A depender do ângulo de visão, podemos ver distintas pequenas partes de seu corpo oculto: dedos que se apoiam na coluna, alguns fios de cabelo, um pedaço de tecido. De que ela se esconde?
Repentinamente, ela sai detrás da coluna e, com os braços abertos, dispara a correr. Seu longo vestido preto e suas mãos semelhantes a garras produzem em mim a imagem de um pássaro. Um pássaro agourento. Laura voa e venta, contorna as colunas, vai até o fundo do palco e volta, em um trânsito incessante. “Um corpo espectro que ronda o espaço por vias sinuosas”, como escreve João Saldanha[1], em um texto sobre o trabalho, que li recentemente. Guardo a memória de seu percurso desenhando um oito sobre o palco, ou o símbolo do infinito, ou a fita de Moebius. Súbito, tenho a impressão de que ela corre com medo. Medo de que?
Assisti Dança Macabra três vezes. A última, agora, dentro da programação do Festival Panorama. Escrever sobre o espetáculo para o Laboratório de Crítica é, para mim, um maravilhoso pretexto para mergulhar na obra. Desde o começo, soube se tratar de um trabalho com pesquisa extensa. Laura escreveu sobre seu processo para a revista ensaia[2], que tive agora a oportunidade de ler. Um texto muito rico, que me provocou profunda empatia. Essa é a primeira vez que escrevo sobre uma obra tendo acesso a seu processo criativo, de forma assim direta. Uma imersão rara e produtiva.
Nos últimos dias, as imagens que Laura evocou no palco e em seu texto têm convivido comigo diariamente, têm atravessado os meus pensamentos e me acompanham aos lugares aonde vou. Como, por exemplo, ao planejar uma performance para apresentar em uma aula do curso de Teoria da Dança da UFRJ. Meu tema era gesto, tendo como subtema “os cem gestos que marcaram o século XX”, uma proposição tomada de Dani Lima, outra coreógrafa carioca, para a criação de seu espetáculo 100 Gestos, de 2012. Entre os materiais que selecionei para essa performance, um gesto-imagem que me marcou: a menina do Vietnam fugindo em desespero de um bombardeio, em 1972. Ao rever seu rosto de pavor, seu corpo nu, seus braços abertos, me lembrei imediatamente de Laura e sua dança macabra. O gesto de quem foge de algo. O gesto de quem vai em direção a algo. O gesto, como escreve Giorgio Agamben, é “a exibição de uma medialidade, o tornar visível um meio como tal”[3]. Ainda segundo o autor, “o que caracteriza o gesto é que, nele, não se produz nem se age, mas se assume e suporta”.[4] Dirijo minha atenção à persistência dos movimentos corporais que Laura exibe e sustenta enquanto dança, sua medialidade sem fim.
Em outro momento da peça, ainda que não mais corra, Laura continua a atravessar o palco de um lado a outro, quase em linha reta, indo e voltando no espaço formado entre as colunas que montou. Agora ela está de perfil e apenas os pés se movem, se arrastam para frente e para trás, dão pequenos saltos. Seu corpo, reverberando o movimento, segue se deslocando. De tempos em tempos, Laura desaparece por alguns minutos, atrás de uma das colunas. Nessas horas, tudo que vemos dela são alguns fragmentos. Em uma dessas desaparições, ela desloca sutilmente o cubo mais alto da coluna. Na verdade, eu nem percebi que a ação foi proposital, achei que o cubo tinha saído do lugar por causa da agitação de seu corpo. Um amigo, com outro ângulo de visão, me contou depois sobre esse pequeno gesto, quase imperceptível, mas que poderia precipitar a queda. O risco de a coluna desabar passou a fazer parte da cena, acrescentando mais sentidos ao que se passava a nossa frente. Eu penso no meu equilíbrio instável, meu amigo pensa no risco de viver e de morrer.
E eu ainda não falei do rosto e dos olhos desviantes.
A peça de Laura tem uma estranheza que, após ouvir André Lepecki em uma palestra, há poucos dias[5], eu poderia chamar de singularidade. Lembro de ter me deparado com essa palavra no mês passado ao ler um diálogo entre Lepecki e a coreógrafa portuguesa Vera Mantero. Na conversa, publicada na revista O Percevejo[6], Lepecki explica que singularidade é um conceito tomado emprestado da física para se referir, por exemplo, àquele ponto crítico em que o elemento água, que está em estado líquido, pode passar ao estado sólido. Lepecki pensa a questão da singularidade para falar sobre a dança experimental[7], uma certa dança que se faz hoje: “O que é ficar, permanecer, nesse ponto crítico e nunca se decidir se você vai ser sólido ou líquido?[8]” Percebo a produção de estranheza em Dança Macabra como um desejo de resistir nesse ponto crítico, ou, acompanhando o pensamento de Agamben, insistir na medialidade sem fim.
Releio o ensaio que Laura escreveu sobre o processo de criação de Dança Macabra e observo que sua escolha é estar entre coisas, entre estados. Ela discorre sobre fluxo e interrupção, escrever e apagar, deslocamento e resistência, avanço e paragem. Vejo essas noções traduzidas em trajetórias que se inscrevem infinitamente no palco, gestos que se refazem a cada vez, pés que avançam e travam, corpo que aparece e desaparece. Há um momento em que seu corpo se debruça sobre si mesmo. Um assombro. Laura, em seu longo vestido preto, morre um pouco. Volto ao seu texto e encontro estas palavras: “Insisto na desistência – o corpo que larga, abandona o ímpeto de produzir/mover. Se debruça sobre si mesmo e permanece pendurado. Ativo, na escuta.[9]” Há a desistência e há o recomeço. E há algo aí, entre tudo isso. Escolhi escrever sobre essa dança porque eu sinto do que se trata.
Preciso mencionar um detalhe que me chamou a atenção durante o espetáculo. Apesar de ter notado variações nas três vezes em que o vi, o olhar de Laura fica por um bom tempo voltado para a lateral superior. Ou seja, sua íris se fixa no canto do olho. Olhando para algo? Evitando algo? Ela desvia o olhar da plateia até quase o final, quando aí sim nos olha e recita, com voz potente, mesclando italiano e português, uma passagem de um texto de Pasolini – Cos’è questo golpe? Io so[10] (O que é este golpe? Eu sei).
Ao nos encarar e dizer algo que, em primeira instância, parece destoar do tom, digamos, mais filosófico e subjetivo do espetáculo, uma atmosfera política se inaugura. Ou é nesse emaranhando que estamos todos desde sempre mergulhados? De toda forma, há algo mais acertado para ser dito hoje no Brasil em que vivemos?
As referências que descubro na leitura do processo de Laura são tantas, que me esqueço de falar sobre o macabro. Encontro a Medusa, em seus olhos desviantes, e vejo a Deusa Baubo, quando ela estranhamente puxa o vestido até a cabeça e fica de novo daquele jeito, debruçada sobre o próprio corpo. Recordo que, em uma das apresentações que vi, ela falava algo enquanto estava nessa posição. Mas não falou nesta última vez. Ou me engano?
No final do espetáculo, Laura está nua, inerte, deitada no chão, em frente a uma televisão (que ela traz dos bastidores para cena, puxando-a por fio), onde vemos uma outra imagem sua, leve e dançante, sozinha em uma sala de ensaio. No palco, passiva como um cadáver exposto em pele, carne e osso, ela contempla a vida que passa lá. Importante notar, porém, que essa Laura que dança está enquadrada na tela da TV, luminosa e aprisionada. Uma composição derradeira de fragilidade e força que enfatiza a singularidade dessa obra, o desejo de habitar a transição, de viver entre estados, de existir no meio das coisas.
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Silvia Chalub é graduada em Comunicação Visual e pós-graduada em Comunicação e Imagem, ambos na PUC – RJ. Coordenou a editora Saber Viver Comunicação, especializada em publicações na área da saúde, durante 15 anos, até 2012. Pratica dança contemporânea desde 2012 e, em 2013, iniciou sua pesquisa no campo das artes do corpo, incluindo dança e performance. Integra o Laboratório de Crítica desde 2013. Junto ao LabCrítica tem trabalhado em iniciativas de editoração e publicação. Em 2016, com Sergio Andrade, organizou o livro Performar Debates: LabCrítica no Festival Panorama e outras dobras (2017).
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[1] João Saldanha, coreógrafo com quem Laura trabalhou diversas vezes.
[2] SAMY, Laura. Olho para a morte como olho para uma paisagem, in revista ensaia, n.2, junho 2016. http://www.revistaensaia.com/edicao-n-2 (acesso em 20 de novembro de 2017)
[3] AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o gesto. in Meios Sem Fim: Notas Sobre Política, p.59
[4] IDEM, p. 58
[5] No encontro promovido pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Cena da Escola de Comunicação da UFRJ, em 22 de novembro de 2017.
[6] Investigação e Criação: Um diálogo entre Vera Mantero e André Lepecki, in Revista O Percevejo, Vol. 06, Nº 01, Janeiro-Junho/2014 , p. 183-207
[7] Assim como muitos autores, Lepecki usa a expressão dança experimental ao se referir a uma certa dança cênica contemporânea, um dança que está interessada em pesquisar a linguagem, a cena, os modos de produção e de partilha.
[8] Investigação e Criação: Um diálogo entre Vera Mantero e André Lepecki, in Revista O Percevejo, Vol. 06, Nº 01, Janeiro-Junho/2014, p. 194
[9] SAMY, Laura. Olho para a morte como olho para uma paisagem, in revista ensaia, n.2, junho 2016. Disponível em: http://www.revistaensaia.com/edicao-n-2 . Acesso em 20 de nov. 2017.
[10] Em seu texto para a revista ensaia, Laura explica que Cos’è questo golpe? Io so é “um célebre artigo publicado no jornal italiano Corriere della Sera em 1974 e gravado por Pasolini. Ali ele declara em tom conciso/profético/justo/trágico ter conhecimento dos responsáveis pela instabilidade política e pela existência de um esquema político-criminal na Itália desse período”. Cf. SAMY, 2017.
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© Texto produzido durante a Imersão LabCrítica no Festival Panorama 25 + 1. <<Saiba mais!>>