Foto: CLAP /
“Para entrar no espaço, você precisa estar com o saco na cabeça” – fui alertado no foyer do Centro de Artes da Maré. Estranhei. O saco permitia enxergar e respirar, apenas. Mas o vesti, apostei no que viria a seguir, e adentrei um espaço onde havia uma pequena multidão de pessoas com as cabeças “ensacadas”. O abafamento de alguns sentidos contribuiu para o destaque da visão. De todos os lados os olhares se esbarravam, se perdiam e se desencontravam para se encontrar. Havia uma certa tensão no ar, não sabia dizer se o espetáculo que eu havia ido assistir estava realmente acontecendo ou não, se já havia começado e apenas eu que não sabia… Até que alguém me pegou pela mão e me fez encarar um desconhecido. Essa imersão inicial foi a chave deste trabalho, que pedia para o público não apenas assisti-lo, mas para vê-lo.
Esta foi a recepção de De carne e concreto – uma instalação coreográfica, uma obra densa trazida pela Anti Status Quo Cia de Dança (Brasília) para ser apresentada no Festival Panorama 2017. A obra aborda questões sobre como vivemos em sociedade, como interagimos, nossa relação de consumo com o mundo atual e o que isso implica nos nossos corpos. Mais importante que isso, promove debate sobre o local do corpo e o que acabamos por fazer dele.
Com uma narrativa surpreendente, somos conduzidos durante cerca de duas horas e meia a ver. Primeiramente, uns aos outros, não havendo distinção entre plateia e artistas – dinâmica esta que se mantêm em uma linha tênue durante toda a duração da obra, pois em muitos momentos a plateia é convidada a agir sobre os bailarinos e a participar das cenas, simplesmente sendo levada pela mão no espaço ou ajudando o bailarino em cena a colocar lixos dentro de suas roupas, quando o mesmo se encontra impossibilitado de fazer isso. Estimulados por uma estrutura que nega a hierarquia do bailarino-no-palco e o espectador-na-plateia, somos livres para percorrer o espaço enquanto as ações acontecem, o que nos dá a liberdade de ver os acontecimentos de vários ângulos e de várias perspectivas. Ajudando na construção da narrativa ou sendo um obstáculo para os artistas em cena, cabe a nós, espectadores, a definição dessa beira que separa artista e plateia. Porém os acontecimentos são praticamente magnéticos, fazendo com que nunca fiquemos muito longe do que está acontecendo.
Durante seu seguimento somos chocados pela crueza e visceralidade do trabalho, ao sermos expostos ao que há de mais concreto na humanidade, o nu – a nudez explicita o que é de verdade, quando estamos nus: não há nenhum tipo de ilusão e, também, não há mais o que esconder. O corpo nu é apenas o que é, o que há de mais natural. O tabu sobre a nudez é uma construção histórica por conta da hipererotização da nudez. Perceber aqui que a nudez é algo que choca não é pelo fato de estes corpos estarem nus, mas pela desconstrução proporcionada pela cena. Repito que o nu é o que há de mais natural, pois no devir constante da vida, o que se mantêm conosco é o corpo, sendo modificado pelo tempo. É carne, concreta, que permanece conosco o tempo todo até findar-se. Já as alterações que causamos nos nossos corpos são mais efêmeras que a própria vida, reforçando que é a carne que é concreta. A nudez contrapõe-se à visão que é nos mostrada minutos antes, quando os corpos eram deformados por possuírem uma quantidade considerável de lixo dentro de suas roupas.
Lixo, muito lixo – esse elemento, essencial para dar tom à dramaturgia da obra – preenche o espaço (e quando digo isso falo de praticamente todo o espaço) durante o segundo ato. Levantando a questão do consumo desenfreado e sem necessidade pelo qual passamos quase que diariamente – uma ironia do destino eu estar escrevendo este texto justamente na Black Friday – e o descarte das coisas que consumimos, lembro que uma frase clichê passou na minha cabeça ao assistir a cena “Você é o que você consome!”. Mas será que somos de fato isso? Ou será que somos consumidos por aquilo que consumimos?
Essas são algumas perguntas que De carne e concreto nos traz ao nos dar a visão de corpos nus numa briga frenética em meio a um – quase – mar de lixo, fazendo os intérpretes chegarem à exaustão. Nesse momento, somos obrigados a ver o espetáculo em sua totalidade. A diferença do formato desses corpos, antes preenchidos até suas roupas transbordarem com lixo e, depois da luta, despidos de todo o lixo. Essa dualidade de formas corporais faz com que nos perguntemos: somos aquilo que consumimos, como a roupa, a prótese, a maquiagem, o aplique? Ou somos o que sobra quando nos despimos de tudo isso? Quando é que podemos ver o que é real, de verdade? Na carne e fora dela? Teria a carne, que pertence ao plano concreto, virado algo subjetivo pelo fato de colocarmos tantas coisas sobre e dentro dela? O que sobra de concreto quando ficamos completamente nus? E o que isso diz sobre nós, humanos, no panorama político atual que nega e transforma em tabu o corpo nu? Estaríamos negando a nossa própria concretude?
A obra também nos pergunta qual é o lugar do corpo e o que acabamos por torná-lo, os dançarinos brigam, conciliam, dispersam sobre o lixo e em outro momento até fazem dele um local de morada. Perguntando-nos onde acabamos por deixar o nosso corpo e toda a potência dele. Teria nosso mundo contemporâneo, que dá tanto valor as ideias, deixado o corpo para o lixo? Seria o corpo, por sua natureza perene, também descartável? E parece que esta é uma questão deixada em aberto, pelo fato de estarmos no meio do lixo, daqueles corpos estarem no meio do lixo e pelo fato de, quando eles ficam nus de tudo, restar apenas o lixo.
“Você pode vir aqui, por favor?” Assim chamavam os bailarinos nus, convidando aqueles que estavam assistindo para tocá-los em lugares que normalmente não são vistos, que são cobertos por roupas, ou convenções sociais, como quadris, clavículas, omoplatas… Ressignificando estas partes do corpo e as suas potências, transcendendo qualquer erotização que poderia haver naquela cena e mostrando de uma forma lúdica a concretude da carne. Uma brincadeira simples e exemplificativa de toque – e, para alguns, um novo conhecimento sobre essas áreas.
O cenário é deixado como exposição, vestígios do espetáculo espalhados pelo espaço evidenciam a ideia do que é deixado por nós, também é concreto. Que nossas vivências e experiências também estão no plano da concretude e que alteramos os espaços pelos quais os passamos. As marcas concretas que são deixadas no espaço também correspondem a marcas deixadas na memória de quem assistiu. Mostrando que o concreto também está naquilo que foi, e que descartamos, que nem todo concreto está no plano do físico, e que podemos não vê-lo, mas está lá. O lixo é uma memória da alteração que é feita em nós, é o que fica de concreto quando ocorre a mudança. Quais mudanças ocorrem quando deixamos o corpo – e todas suas alterações – para trás?
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Rayan Pires Sarmento é gaúcho, amante de cultura pop, dançarino e pesquisador de Danças Urbanas. Técnico em Tradução, Tecnólogo em Logística e atualmente cursando Bacharelado em Teoria da Dança na UFRJ.
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© Texto produzido durante a Imersão LabCrítica no Festival Panorama 25 + 1. <<Saiba mais!>>