Os únicos pés que estão descalços

Foto: CLAP   /

 

aCORdo, dirigido por Alice Ripoll, dança as desigualdades sociais e raciais desse “Brasil brasileiro”. Diferente da esperada passividade da plateia, aCORdo faz uso de dispositivos que geram certo agenciamento nos que, a princípio, só foram assistir. Qual é o acordo estabelecido com base nas cores dos corpos humanos em nossa sociedade? É possível vislumbrar possíveis respostas desde o momento de entrada na Escola de Cinema Darcy Ribeiro até o final da dança. Não é difícil de acreditar que a maioria dos corpos que ocupavam aquele espaço num sábado, dia 11 de novembro, era branca. Entretanto, entre os artistas da performance a maioria era negra. O que isso pode dizer? Já teríamos com essas observações uma espécie de prefácio para pensar aCORdo?

Os quatro protagonistas da cena iniciam deitados, debruçados uns sobre os outros e trajando roupas que lembram uniformes usados em obras de construções civis. Todos descalços. Eles transitam do estado repousado para uma agitação coletiva. Trabalhadores descansando parceiros cúmplices dançam se divertem.

A percepção de uma cumplicidade vinda da relação e do contato daqueles quatro artistas em cena é explícita. O acordo também estaria estabelecido dessa forma? É como se as cores daqueles corpos os fizessem passar por situações parecidas e com isso eles se amparassem e se protegessem. Muitas de suas movimentações se sustentam com o apoio do outro. Porém, as vivências semelhantes resultariam do fato deles não serem enxergados como possuidores de subjetividades complexas e livres de serem alvos. E este é um dos pontos que são levantados por aCORdo.

O acordo faz com que não ocupem espaços “elitizados” e, quando ocupam, sejam minoria. Faz com que sejam vistos como um só, sem individualidades e particularidades. Com que sejam “confundidos” com bandidos e que tenham de sobreviver a rotinas de trabalho desgastantes e mal pagas. O que você faz para legitimar e/ou deslegitimar este acordo? Quando o público é levado a interagir de forma mais direta com a performance, parece que esta pergunta é lançada sobre cada um de nós.

Sem qualquer fala ou aviso adiantado, os bailarinos se dirigem às pessoas do público, pegam objetos destas e penduram em seus corpos. Óculos, mochilas, bolsas, relógios, sapatos… Também fazem trocas entre os próprios espectadores. Dão a bolsa de um para outro e por aí vai. Ao terminarem a dança dos pertences, se encaminham em direção à parede e param com as mãos para o alto e as pernas afastadas. Para pegar os objetos de volta, os respectivos donos precisam buscar com quem estiver.

Quais são os corpos livres?

aCORdo sugere que a não passividade proposta na sala, no momento artista-espectador, se amplie e atue na visão macro da nossa sociedade de maneira positiva e construtiva. Acredito, ou prefiro acreditar, que não seja possível sair do espetáculo sem refletir sobre as imagens que foram ali vivenciadas. Não me foi possível sair tranquila de lá, e espero que os sujeitos brancos que participaram-assistiram também tenham sido tocados pelo trabalho. Vejo esta dança como mais uma tentativa de diálogo para se pensar e repensar as relações raciais no Brasil.

Thaís Nascimento é graduanda em Artes Cênicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e pesquisadora pelo PET – Letras da PUC-Rio. Participou da imersão do Laboratório de Crítica no Festival Panorama no ano de 2016 e 2017 e do livro Performar Debates: LabCrítica no Festival Panorama e outras dobras (2017).

 

© Texto produzido durante a Imersão LabCrítica no Festival Panorama 25 + 1. <<Saiba mais!>>