Sobre corpos, palavras e paisagens

Como a programação do Festival Panorama 2015 nos ajuda a pensar a mescla de linguagens como um dos campos mais efervescentes da criação nas artes do corpo – e não somente

Faz algum tempo que não apareço, é verdade. Ando ocupado com a vida e outros escritos, mas agora me parece a hora certa de voltar. Hora de compartilhar os pontos que tenho coletado e conectado ao longo das últimas semanas, num exercício que impacta tão ferozmente minha estrutura a ponto de não me preocupar muito se faz sentido o que vem a seguir. “Que importa o sentido, se tudo vibra?”, me ensinou uma vez Alice Ruiz. Essa semana mesmo usei essa frase em estímulo a colegas buscando com desespero uma significância nas coisas – o que é perfeitamente natural. Essa deve mesmo ser uma de nossas necessidades mais básicas. Só que, às vezes, é preciso romper de alguma forma com essa ordem, para que não nos tornemos inertes. Não é que eu não queira fazer sentido. Eu quero. É só que realmente não me importa muito fazer sentido agora. Estou interessado em outra coisa.

É uma segunda-feira de novembro do ano de 2015. Estou rodeado de gatos e móveis velhos, sentado no sofá encardido da casa de uma boa e velha amiga, atriz, palhaça, e, por que não?, performer, uma vez que o dicionário, mesmo numa definição limitada, trata da performance como uma manifestação artística que pode combinar várias formas de expressão. Performance, arte, presença, texto, movimento. Ultimamente tenho pensado sobre a elasticidade de termos como esses e suas definições, numa atividade essencialmente subjetiva de vencer um desafio de origem pessoal: como avançar criativamente no território da crítica, em especial a crítica sobre as artes do corpo? Como movimentar discursos sobre os corpos que dançam (e sobre os que não dançam também)?

Semanas atrás, enquanto procrastinava na internet – algo que faço com extrema habilidade e que sempre me atrapalha na questão do hábito e do ritmo da escrita – deparei-me com uma publicação da página do Festival Panorama, anunciando a seleção de participantes para a quarta edição do Laboratório de Crítica, projeto coordenado pelo Professor Sérgio Andrade, do Departamento de Arte Corporal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (DAC-UFRJ), numa parceria entre o curso de Bacharelado em Teoria da Dança da UFRJ e o Programa Educativo do Festival, que nesse ano adotou a iniciativa como projeto de extensão. A programação parecia excelente e eu precisava mesmo de um estímulo para produzir mais.

Rápido flashback: em 2012 assisti, pelo Panorama, ao espetáculo da coreógrafa americana Meg Stuart, Violet. Foi a minha primeira vez diante de uma performance de dança contemporânea e basta dizer que fui atingido com efeito. No ano seguinte, me voluntariei para trabalhar como assistente na produção do festival (já interessado em pensar, de certa forma, os bastidores, o antes do palco) mas acabei desistindo no último minuto. Achei então que o laboratório seria a oportunidade ideal para voltar a me relacionar com o evento.

Dias depois da inscrição comecei a receber mensagens da coordenação do curso, com datas e orientações diversas para a maratona de encontros e espetáculos que ocorreriam entre os meses de outubro e novembro. As primeiras reuniões foram tomadas por densa carga teórica, fundamentada em obras de pensadores contemporâneos como Jacques Derrida, André Lepecki, Peggy Phelan, Luiz Camillo Osorio, Cauê Alves e J. L. Austin, entre outros, seguida de longas discussões sobre seus respectivos argumentos a respeito do exercício da crítica, da curadoria, da performance e das dramaturgias do corpo. Os últimos encontros destinaram-se a discutir as experiências, os primeiros pensamentos e os escritos sobre os espetáculos vistos, os encontros e as conversas com os artistas. No derradeiro, daqui a exatos três dias, entregar você, este rascunho, a primeira versão do texto crítico sobre a curadoria do festival.

Sei que isso não parece em quase nada com uma crítica comum. É disso também que se trata este texto. Não importa a forma com que exerço meu pensamento crítico, mas sim como, em que tom, exatamente como sugere Derrida. A ideia inicial, quando digitei a primeira letra, era emular uma memória, mínima que fosse, dos ensaios do escritor americano David Foster Wallace, e de todo o movimento new journalism. Sobretudo os diários da escritora britânica Rae Earl, que resultaram na série My mad fat diary, e os impactos que a produção do canal inglês 4HD provocou em mim. Uma pretensão absoluta, mas jamais descabida. Onde mais poderia analisar e testar uma ideia, senão num laboratório?

Nesse momento, eu e todas essas malditas muriçocas estamos completamente sós, o que é raro. O resto da casa está vazia. Sequer os gatos estão. O tempo está ameno, de um jeito que gosto especialmente, e todo o ambiente está iluminado pela luz natural de um fim de tarde de primavera exuberante no Rio de Janeiro, um pouco menos exuberante nas proximidades da vizinhança no bairro do Estácio, onde aguardo meu anfitrião retornar para que eu possa conseguir carregar o celular e começar o inferno do “Oh, Deus, por que não consigo escrever?” de novo. A energia elétrica caiu quando terminava o banho e não sei onde e como ligar novamente. Graças a isso estou aqui, produzindo, e acabo de realizar que sem acesso à internet é muito mais fácil conseguir me concentrar e escrever. Ou seja, as entrelinhas dizem que não tenho domínio sobre o mau uso que faço da rede.

Não por acaso, o trabalho mais impactante entre as cinco produções que acompanhei – das vinte e uma trazidas ao Rio pelo festival – foi Forecasting, da dupla croata/italiana Barbara Matijevic e Giuseppe Chico. Por meio de uma seleção de tutoriais e outros vídeos capturados no Youtube, os dois tocam em questões íntimas e urgentes: tecnologia, consumo, relacionamentos, solidão, e, sobretudo, como a arte pode tornar-se um liquidificador de temas e emoções das mais diversas, com resultados poderosos.

Na noite de estreia, cheguei ao teatro Sérgio Porto, em Botafogo, pelo menos duas horas antes do início do espetáculo, e aproveitei para terminar a leitura de A arte de pedir (2015), de Amanda Palmer, uma instigante declaração sobre o poder de conexão pela arte, com ajuda fundamental da internet. Atravessado pelas reflexões muitas vezes pouco ortodoxas da autora, que começou a carreira performando na rua como estátua viva, talvez tenha sido fácil comprar a narrativa fragmentada (com resultado impressionantemente fluido) proposta por Forecasting.

Quando o espetáculo finalmente começou, após muitos pedidos de “desliguem os celulares para não provocar interferência” e “procurem não ficar nos assentos das pontas, concentrem-se no centro”, quem saudava em diversas línguas a plateia quase lotada do espaço era um modernoso notebook, sustentado por um discreto suporte. Na tela, um tutorial ensinava a trocar a placa de memória de um computador. “Precisava de mais espaço para guardar minhas músicas, fotos e vídeos”, dizia o rapaz no vídeo. A partir daí, construiu-se uma dramaturgia rica de reflexões e momentos de empatia.

Vestida casualmente, Bárbara manipulava o computador utilizando-o como parte integrante do próprio corpo, num exercício biônico coreograficamente ousado e bastante preciso. A plateia tinha devaneios com sua dança, seja quando a via jogada ao chão transformada num podólatra, ou quando a imagem das estridentes cordas vocais de um indivíduo era colocada entre as pernas da performer, simulando uma vagina. Cinquenta minutos se passaram, rápidos e certeiros numa costura de momentos de humor e de tensão emocional. No meio de tantos detalhes instigantes, destacava-se a interpretação de Bárbara que, somada ao artifício da mudança de voz narrativa, provocava pequenos curtos-circuitos – a ponto de não sabermos quando, na verdade, se tratava do discurso dos outros ou dos próprios artistas.

O Panorama, a propósito, consagrou-se como um evento feito por artistas, para artistas e sobre os artistas, conforme nos assegurou a curadora do festival, Nayse López, em encontro com participantes do Laboratório de Crítica, calouros e veteranos dos cursos de Dança da UFRJ (Bacharelado em Teoria da Dança, Licenciatura em Dança e Bacharelado em Dança – interessante como a dança tem ganhado projeção acadêmica cada vez maior), para onde rumei cansado numa tarde de segunda-feira de calor típico, às vésperas da abertura oficial do evento. Ao longo das vinte e quatro edições, o festival tem buscado continuamente se abrir para diferentes linguagens, desde que apostem no “corpo como arena de resolução, ou pelo menos de conciliação dos muitos discursos conflitantes no mundo”, como resumiu Nayse no material de imprensa.

Num esforço para potencializar essas obras, é notória e louvável a tentativa do Panorama de se transformar, também, num festival de acesso, não apenas no que tange a ingressos abaixo dos trinta reais, mas também na abertura do território e no estímulo para compreensão das produções, tal como exercita o Programa Educativo do Festival. No entanto, com onze espetáculos internacionais num ano em que um dos eixos curatoriais busca estabelecer uma relação – um diálogo? – com a palavra, algumas escolhas e/ou condições de exibição dos espetáculos levaram a experiência a um ponto intrigante – o que pode ajudar esse texto a se tornar menos monótono, vamos ver.

Em Forecasting, a tradução dos relatos em vídeo, projetada discretamente em legendas no fundo do palco, ainda assim disputava com os movimentos de Bárbara e seu computador a atenção e emoção da plateia. Mas o recurso era necessário e complementar ao espetáculo (mais ou menos o que acontece quando assistimos a um filme legendado). O movimento da intérprete impressionava e entretinha, compunha a ação da performance, mas eram as palavras que pareciam dar a dimensão existencial da presença dos personagens, retirados de seus contextos originais. Numa equação louca, o discurso dos personagens nos conectava às experiências deles por meio do corpo de Bárbara, num exercício iterado de metacorpo.

Mas é só isso? São somente referências e conceitos triturados num liquidificador e vendidos como arte, soberana e inquestionável, e ainda repassada como um serviço? Onde estão os cutucões que fazem a estrutura tremer? Bem, talvez Forecasting peque em usar a tecnologia como instrumento e como tema sem questionar essa hegemonia tecnológica, artística e egocêntrica em nenhum momento. Não que eu tenha notado, ao menos. Pecado é um termo exagerado, é verdade. Não quero estabelecer protocolos para a obra, afinal, a obra não tem obrigação nenhuma, diz o coordenador do LabCrítica, e concordo com ele. Seria então essa aparente indolência da obra com relação à tecnologia, à arte e a si mesmo realmente um problema? Particularmente, acho que não, mas se sim, permito que as lacunas deixadas por essa crítica sejam preenchidas por quem me lê, possibilitando que esse texto se mova, também. Conversamos sobre a questão hoje no LabCrítica sem chegar exatamente a nenhuma conclusão, a não ser a de que uma obra artística jamais sairá ilesa do que vem a seguir. Cabe à crítica, então, a tarefa de problematizar com substância a obra.

Originalmente, Forecasting encerra uma trilogia cujo título (Teoria da performance por vir, ou, a única maneira de evitar o massacre é tornar-se seu autor?) talvez revele algo sob os questionamentos do parágrafo anterior. Estaria a internet e tudo o que ela possibilita nos tornando vítimas de um massacre (de informação, de autopromoção e exposição, de marketing, de possibilidades), ao mesmo tempo em que pode ser ressignificada artisticamente? Como então reagir a esse massacre? Talvez o que Bárbara e Giuseppe estejam dizendo aqui seja “não importa o que a internet nos possibilita, que alternativas ela nos propõe, mas ‘como’ usamos todas essas possibilidades, meus amores. Não é óbvio?”. Sim, parece um pensamento bastante óbvio. Ocorre que o “como” faz parte do que somos. Nesse caso, como mudar o que somos quando se trata de temas tão onipresentes quanto poder, sexo, comportamento humano, política? Como mudar o que o outro faz e como isso nos afeta? É engraçado: quando o espetáculo acaba a obra pode até não sair ilesa, mas se exime de qualquer responsabilidade. Ficam as interrogações.

Mas do que mesmo eu falava? Ah, claro, dos limites intrigantes da curadoria do festival, que tornam a coisa toda um pouco mais catalisadora para quem escreve. A ambiguidade da palavra “intrigante” porventura parece representar bem as quatro peças interpretadas pelo duo britânico/italiano Jonathan Burrows e Matteo Fargion, em dois dias na sala Cecília Meirelles, em que a interrogação maior era de ordem mais linguística, digamos. A ausência de tradução provocou especial desconforto, sobretudo no segundo dia, e creio que não apenas para mim, um autêntico autodidata em inglês medíocre. A sensação é de que a experiência, sem o auxílio técnico da tradução, tornou-se reduzida. Entretanto, suponho que não tenha sido a intenção da dupla fazer-se entender de forma literal, crentes no poder de impacto das obras mesmo sem compreensão total de todas as suas camadas – o que obviamente é impossível, uma vez que a obra é sempre da ordem do acontecimento, e esse ideal de compreensão total e absoluta, mesmo justificado pela incondicionalidade desse desejo, é irreal.

Rumores indicavam isso: Burrows e Fargion teriam autorizado a tradução e impressão apenas de pequenos trechos das peças, que indicavam porções generosas de ironia e virtuosismo narrativo. Todos cabendo numa única folha, entregue ao público pouco antes do início das sessões. O que notei da plateia que assistia a Both sitting duet | Body not fit for purpose, entretanto, foram olhares constrangidos e constrangedores, além de risos nervosos e alguma tensão. Oi? Que diabos estava acontecendo naquele palco? Foi curioso durante algum tempo observar as reações em mim e nos demais, mas em determinado momento a repetição dos movimentos inortodoxos e quase esquizofrênicos de Burrows e Fargion tornou-se frágil e cansativa, e nem mesmo a observação como resultado de experiência me fazia permanecer interessado em estar ali.

Eu estava curioso para, após três anos vivendo no Rio, e na Lapa, enfim conhecer a sala Cecília Meirelles, reaberta não fazia muito ao fim de uma demorada reforma. Levei a tiracolo um amigo mais leigo que eu no universo da dança contemporânea, julgando que seria interessante observar esse desvirginamento. Douglas mostrou-se desde o início incomodadíssimo com o caráter pouco convencional da atração. Cochichava absurdos em meu ouvido esquerdo. Mais que incapacitado intelectualmente para acompanhar a performance, sentia-se estrangeiro e bradava: “Estou no meu país. Além do mais, qualquer um pode chegar ali em cima e fazer aquilo. Isso não é arte. Ainda bem que não pagamos pelo ingresso”.

Sérgio, o orientador, pareceu perturbado sobretudo com a questão do monolinguismo. Posso questionar o monolinguismo do outro sem questionar o meu próprio? De onde viria essa hegemonia linguística que fazia com que de antemão a obra fosse execrada apenas por ser encenada em outra língua, “no meu país”?, longe do entendimento convencional proporcionado, talvez, pela soberania da TV no Brasil. Viria daí, da TV? Haveria na resistência de Douglas um quê de preconceito linguístico? A maioria dos brasileiros, em seu lugar, pensaria como ele? Provavelmente sim, e os condicionantes históricos talvez ajudassem a entender a origem desse comportamento.

Tentei contrapor os argumentos do meu amigo naquilo que me parecia mais simples, mas parecia descabido naquele momento. Aquela espécie de perplexidade do público, os exaustivos padrões de repetição adotados pelos dois no palco, a impressão de total aleatoriedade da ação, as palavras esparsas e o dedilhado ágil de Fargion no bandolim afinado, soando com perfeição na acústica preparada para abraçar a música da sala de concerto… Tudo aquilo resultava em genuíno caos, mas me chegava sem qualquer espécie de beleza nem encantamento. Desnorteado, sentindo-me convidado para uma festa em que não tenho acesso ao camarote, ouvi comentários jocosos no final, e, confesso, simpatizei com alguns deles.

Na segunda noite optei por ir sozinho. A sala parecia mais movimentada e o público aparentava ser mais homogêneo e menos leigo que no dia anterior. Havia mais colegas de classe, educadores, figuras de aspecto aristocrático, e alguns pareciam verdadeiramente animados para o início da sessão. A questão da ausência de tradução me afetou ainda mais profundamente em Cheap lecture | The cow piece, duas peças com enormes falas completamente em inglês cantadas em ritmo veloz. Por obra do acaso sentei ao lado do Sérgio, ele mesmo, o responsável por orientar e rever os fundamentos desse texto. Pude presenciar seu riso entusiasmado em mais de duas oportunidades na mesma noite e comecei a me sentir como Douglas, marginalizado em meu acesso à completude da obra, ainda que por essência a arte seja sempre inacabada, como nos lembrou Michel Groisman alguns dias depois, no encontro em que apresentou ao laboratório seu Risco.

Perguntei-me se esse aspecto peculiar poderia sabotar a tentativa de viabilizar a formação de plateias diversificadas, dentro de um festival que se preocupa em ser acessível. Quis saber até que ponto esse desejo brigaria com a preocupação do Panorama em manter o caráter fora do convencional dos espetáculos, e confesso que não sei de fato como isso é percebido por eles. Até que ponto poderia ser proposital esse embate? Até que ponto essa compreensão limitada interfere na percepção da obra? A aula de Deleuze que serve de música para a coreografia da portuguesa Vera Mantero em O que podemos dizer do Pierre foi traduzida e distribuída para os presentes. Será que isso foi suficiente para permitir o acesso a todas as camadas do que era coreografado ali nos jardins do Parque Lage? Ou haveria mais camadas que o texto não ultrapassaria? Não seria o texto também atravessado por muitas camadas?

Ao mesmo tempo em que rezava para que meu professor não tivesse visto os dois ataques súbitos de sono profundo que me fizeram tremular na poltrona, pensei que talvez eu não fosse o público-alvo dos espetáculos, uma vez que os presentes pareciam responder melhor que na noite anterior. Isso não me impedia, contudo, de pensar sobre eles, afinal, creio por motivações de ordem pessoal que é realmente interessante a investigação entre os limites das linguagens, mesclando-as e propondo águas intranquilas para navegar. Burrows e Fargion fazem isso bem, brincando habilidosamente com o humor, a música e a palavra, além, claro, da muito bem-vinda perspicácia em abordar temas incomuns dentro do território da dança (ou pelo menos a dança a que tenho acesso), como a guerra e a política.

Por fim, não é como se a empreitada, transmutada nesse possível caos (que talvez fosse maior ainda na presença de legendas disputando atenção do público com vacas sendo arremessadas), fosse invalidada no papel de conectar. Imagino que o material apresentado pelo duo seja uma boa amostra de seus estudos sobre dança, ritmo, padrões e palavra, como composto híbrido no território naturalmente abrangente das artes do corpo. Mas saí da sala e permaneço ainda, para dizer a verdade, com a sensação um tanto incômoda de que, diante da ausência de tradução, o trabalho apresentado no festival pela dupla parece estimular com mais fervor aqueles com conhecimentos mais amplos e/ou específicos da linguagem da dança e da música, mas quase incapaz de tocar mais profundamente o público comum. Parecia não haver amplitude suficiente para conectá-los à parte da audiência, ainda que um festival como o Panorama, por essência, se preocupe em trazer para o jogo coisas que escapam a uma possível tendência à pasteurização, gerando diferença, debate, e, inclusive, não acesso, como Sérgio me lembraria posteriormente na revisão desse texto. Para os marginalizados, contudo, é provável que o carisma de Burrows e Fargion tenha mesmo sido o principal responsável por manter nos trilhos o trem desgovernado que às vezes parecem ser essas quatro peças da dupla.

Outro eixo curatorial do Panorama esse ano, que poderíamos chamar de “O corpo e a paisagem”, sugere uma reflexão sobre a rua e a urbe como palco e agente. Talvez em razão da preferência pela relação corpo/palavra, eu tenha naturalmente me inclinado mais a uma programação específica, e perdi as apresentações ao ar livre em praças, parques e praias espalhados pelo Rio de Janeiro, onde o Panorama nasceu e se criou.

Dentro do festival, a cidade me chegou como a memória do Rio que me lembra uma Brasília que ainda me aprisiona. Duas visitas à Cidade das Artes com sua monumental arquitetura, algo íntimo dos traçados e da visão de Niemeyer inclusive, mexeram ainda mais nessa relação, do qual já falei muito, você sabe. É de uma beleza penetrante a escultura do arquiteto francês Christian Portzamparc, como se todas as suas linhas impelissem a uma fuga da urbe pela via da arte, enclausurada nas paredes do prédio flutuando no coração da Barra da Tijuca. O edifício da Cidade das Artes abrigou uma diversidade de performances de coletivos e visionários interessados em investigar como o espetáculo redesenha a paisagem, enquanto a paisagem impacta a performance. Deve ter sido interessante acompanhar esses trabalhos e espero que outros textos possam trazer alguma reflexão sobre eles.

A primeira visita foi para ver Untitled_I will be there when you die, do italiano Alessandro Sciarroni. A apresentação inicialmente ocorreria no Teatro João Caetano, mas algum problema fez com que fosse transferida para uma das salas do colosso na Barra. Mesmo sabendo que o prédio está estrategicamente localizado ao lado do terminal Alvorada, o que facilita um pouco a mobilidade numa zona que obviamente não foi projetada pensando em pedestres, não me animei a ir. Pensei nas horas dentro do ônibus possivelmente lotado, do calor e do suor escorrendo pela testa e pelas costas. Depois, na volta, descendo em algum ponto deserto no Centro e voltando a pé pra casa. O mais grave era que eu teria de gastar um dinheiro que me faria falta na minha vida de artista-trabalhando-sem-remuneração. Sim, você sabe que a situação anda bem feia e eu não preciso dizer. Mas então o festival disponibilizou um ônibus para levar e trazer os interessados e eu já havia, por razões que eu mesmo desconheço, perdido um espetáculo que queria muito ter visto – Hu(r)mano, do português Márcio da Silva Ferreira. Na semana seguinte eu perderia outro (Entre ver, de Denise Stutz), pela mesma razão, e agradeceria por ter ido ver Untitled.

Minha amiga palhaça havia ficado entusiasmada pela proposta do diretor de tirar o malabarismo de uma zona ainda carregada de estereótipos e explorar a técnica num contexto mais visual que cênico (eu só saberia mais tarde que poderia tê-la levado, uma vez que muitos lugares ficaram vagos – talvez pela possibilidade da sala ter número maior de poltronas que o inicialmente previsto, ou mesmo pela queda de público em razão da mudança do local de apresentação. Seria um exemplo irônico e ordinário de como a urbe pode impactar a performance). De toda forma, possivelmente ela não teria gostado. O ônibus do festival tinha se transformado em três vans com ar-condicionado e, no veículo em que eu estava, um grupo de jovens conversava barulhosamente. Na volta, descobri que eram artistas circenses e fiquei curioso em ouvir a opinião deles a respeito do espetáculo. Medíocre, era o veredito. “Esperava mais”, disse uma. “Aquilo que eles fizeram no palco é o básico do básico do básico. Tipo, eu vim até aqui pra isso?”. Meus companheiros de tormento no trânsito, que no Rio nunca tem hora para congestionar, voltaram pra casa achando que “pagaram um preço alto demais” para receber muito pouco em retorno.

Eu, no entanto, estava mais interessado em ir além do óbvio na minha avaliação. Talvez os movimentos não fossem mesmo tão audaciosos, mas era necessário que fossem? Comecei tentando entender se o título (Sem título: estarei lá quando você morrer) fazia alguma referência ao impacto da arte enquanto motor de repetição, sempre buscando repercussão, mesmo diante das coisas finitas. Na ausência de elementos para confirmar essa hipótese, pensei então em como era confortável que o espetáculo me passasse a sensação de ter fluído com ritmo: do início de quase não movimento e silêncio para momentos de virtuosismo; da obviedade do arremesso em número crescente de malabares, necessária para construir uma atmosfera sonora precisa. Às vezes é necessário ser um para então ser dois. Dois para então ser mais.

Com cinco performers no palco (quatro malabaristas e um sonoplasta), o diretor trabalha, a partir do som do movimento do corpo dos malabaristas no arremesso dos artefatos, o casamento da cena com a música original de Pablo Esbert Lilienfeld, que parece estar sempre pensando e pulsando a performance com os companheiros. Lilienfeld atua não como um regente, condutor, mas como um colaborador. A presença desse quinto elemento em cena tem papel especial no espetáculo, embora em determinado instante o som pareça demasiadamente repetitivo e ruidoso. Os recursos de iluminação de Rocco Giansante também colaboram para criar uma espécie de balé dos malabares, com forte caráter de poema visual.

Vale mencionar o inegável apelo estético dos quatro charmosos malabaristas, vestidos entre o clean e o despojado, deixando as peças molhadas e transparentes à medida que a ação avançava. Nesse momento, pensei em como o suor também pode ser um elemento que soma à performance, trazendo consigo uma mensagem de esforço, resistência, luta. Num instante de maior comoção, me chamou atenção o controle da respiração, o brilho e a energia quase palpável que emanava dos olhos deles na concentração daquela presença, do agora, no seio de uma arte viva. Pensei se era isso que fazia o material informativo do espetáculo relacionar a arte do malabarismo com a fragilidade da vida, afinal, uma peça que escapasse daquela engrenagem funcionando em perfeita harmonia (quem governava quem ali, malabares ou malabaristas? – perguntou depois um colega) faria com que aquele olhar se perdesse.

Seria o equívoco ou o erro a medida dessa conexão? Que simbolismo carregava o malabar que cai durante a performance, interrompendo a sequência de repetições e arremessos? Nas artes vivas o caráter de presença assume o risco do erro. É da ordem da hegemonia do agora sobre a performance. Mas seria esse risco assumido com naturalidade maior na rua que no palco? Aquela era uma licença poética para o erro? Como pensar o erro em terreno artístico? O que nos diz essa fragilidade? Qual era o risco?

Só fui descobrir a resposta na segunda visita à Cidade das Artes, dessa vez para participar de uma experiência de trabalho conjunto utilizando engenhocas de madeira e metal (arames) idealizadas por Michel Groisman, um artista do qual eu jamais tinha ouvido falar antes, mas que gostava de agir como o professor de artes bicho grilo do ensino médio – o que rapidamente despertou minha simpatia. Por três horas, eu e outros colegas de laboratório, além de alunos da UFRJ e dos próprios voluntários auxiliares do artista no festival, nos divertimos e nos entediamos buscando maneiras de operar coletivamente estruturas que eram a materialização do nosso desejo de nos conectar com o outro, mesmo durante a execução de atividades normalmente realizadas individualmente, como segurar um lápis e desenhar sobre a superfície de um papel.

Em algum momento, enquanto nos debruçávamos sobre a máquina de oito lugares, movendo os bastões de modo que a ponta do canetão pudesse alcançar o chão e traçar qualquer risco que fosse, deixei de sentir tensão e comecei a apenas me divertir. Deixei de pensar que aquilo nunca ia dar certo, já que a porcaria das peças sempre se soltavam e tudo no fundo parecia tão rudimentar que desmoronaria e acabaria com a merda da brincadeira a qualquer momento, será que ele não via aquilo? Em vez de duvidar que ele teria sucesso no que fosse fazer, seja lá o que ele estivesse tentando fazer, eu tinha decidido apenas deixar rolar. Foda-se se a porra da caneta iria ou não encostar no papel.

Permiti o exercício da minha criatividade de movimentos, criando uma coreografia própria, alinhada ou não aos passos dos meus amigos. E então, em determinado momento, já não parecia fazer diferença se operávamos a máquina ou se a máquina nos operava, exatamente como malabares e malabaristas em Untitled. Depois ouvi Groisman dizer que a experiência artística e religiosa se combinavam, e que a criação rompia a forma e então pronto: sentado na geringonça de dezesseis lugares, movendo seus braços mecânicos e frágeis pra lá e pra cá, e meu corpo também, numa dança estranha e boba, pensei que gostava de viver numa cidade que me proporcionava participar da atividade de um festival, que proporcionava a tantos artistas oportunidades de mostrar seus trabalhos a pessoas diversas, que talvez não tivessem outra oportunidade para ter contato com aquilo que eles nem mesmo sabiam se era arte, e que talvez não entendessem que aquele momento de bunda sentada no carrinho, que segurava o maior bastão que eu já vi na minha vida e que poderia até mesmo pintar para sempre o piso da sala da Cidade das Artes escultural e alienígena, poderia, sim, ser arte. Mas o que validaria aquela proposta como arte? Será que fazer parte da programação do Panorama era suficiente? Será que o lugar, a Cidade das Artes e a presença da obra ali, era o que legitimava a instalação-performance de Groisman?

Na verdade, o que legitimava o trabalho daquele tiozão esquisito, ao menos para mim, era, sobretudo, a habilidade do corpo criado por ele de afetar o nosso corpo, física ou emocionalmente. Minha contra-assinatura para Risco chegou por meio de um instrumento simples: sensibilidade para me conectar com a obra, algo que obedece critérios de entendimento e imaginação tão subjetivos e diversos quanto nós mesmos podemos ser. Há quem tenha achado a obra de Groisman inacabada, e para isso ele mesmo já deu resposta. Ouvi comentários de que, na estreia oficial, quase ninguém se interessou genuinamente em participar da experiência. Voluntários tinham de sair convidando e quase arrastando pelo braço candidatos a topar os jogos corporais propostos pelo artista. Uma pena.

Na volta, depois da tarde com Michel, encaramos um congestionamento enorme. Alguns dos colegas na van que assistiriam à segunda apresentação de Forecasting em Botafogo não resistiram ao cansaço e preferiram rumar direto para casa. Uma pena também. Silêncio na van. Silêncio na sala de móveis velhos e encardidos. São quase nove e meia da noite de sexta-feira, feriado num sempre festivo Rio de Janeiro, mas não ouço batuques nem vozes exaltadas. Só escuto mesmo o som do ventilador e dos gatos derrubando objetos ou despencando do telhado. Nelson aparece, se põe frente à porta e me encara, incógnito. Mafalda brinca com a garrafa pet vazia, alheia a qualquer outro movimento, enquanto Heloisa dorme pesadamente no móvel estofado encostado à janela.

Tenho sono também e estou atrasado para um compromisso com colegas. Faz um calor absurdo e embora eu não seja exatamente fã de álcool, tomaria algumas cervejas bem geladas tranquilamente. Bem, nem sei mais o que dizer aqui. Poderia buscar minhas anotações, rever os informativos, concluir a leitura da bibliografia recomendada e talvez encontrasse mais sobre o que discorrer, mas obviamente você deve imaginar que estou muito além do deadline para a entrega deste texto. Mal terei tempo de revisá-lo. Me conforta ao menos saber que houve um acontecimento aqui. Que, ainda que abstratamente, de alguma forma esse discurso carrega meu corpo. Eu performei, e agora concluo a cena e deixo o palco para que os espaços na costura dessa teia sejam ocupados com as reações, e, com sorte, as perguntas de quem me assiste.

Terei eu uma assinatura? Seria isso uma crítica? Ela cumpre seu papel? Seria a crítica uma obra de arte? Seria essa crítica uma obra de arte? Mas QUE DIABOS ESTÁ ACONTECENDO NESTAS FOLHAS?