Plateia, sua enigmática

Faço parte de plateias há muitos anos e o público sempre me intrigou. Não foram poucas as vezes em que meus olhos se desviaram do palco para observar as pessoas que dividiam comigo o espaço. Ultimamente tenho sido espectadora de inúmeros espetáculos de dança contemporânea, e estou cada vez mais curiosa por essa gente que se reúne para… Aí começa a questão. Se reúne para assistir, para se emocionar, para participar, para prestigiar os colegas, para encontrar os amigos? Para o que der e vier? A partir da minha experiência e da minha observação, vou arriscar esse texto sobre a plateia. Inicio mais específica, porém: conjunto de espectadores de espetáculos de dança contemporânea no Festival Panorama de 2016.

Estou na plateia do primeiro espetáculo que assisti no festival. No palco, O que fazer daqui pra trás?, última obra de João Fiadeiro, coreógrafo português, pesquisador do movimento, queridíssimo pelo pessoal da dança contemporânea carioca. A nata está presente, interessada no resultado de sua pesquisa dos últimos anos. Poucos ali esperam ver o que o senso comum denomina “dança”, e de fato assistimos a correria de cinco performers que, um a um, entram em cena e saem correndo para fora do teatro, se revezando a contar pequenas histórias em um microfone no centro do palco.

Não há música, o teatro está todo iluminado. Entre um performer e outro, principalmente no início da obra, o palco fica vazio por um extenso e incômodo período. Os que conhecem o trabalho de Fiadeiro procuram identificar seu dispositivo coreográfico, mas, diante do palco vazio e da plateia iluminada, continuamos ligados nos encontros entre amigos que o festival proporciona. Nossa atenção se volta, portanto, para nós mesmos, o público. Uma bolsa se abre, alguém bebe água, pequenas conversas, alguns risinhos. A amiga ao meu lado supõe que o microfone ocioso é um convite dirigido a nós. Alguém mais, além dos próprios performers, pode querer mandar um recado: “Fora, Temer!” Atravessamos um tempo em que a necessidade de ser escutado é premente. Um microfone aberto e disponível pode suscitar uma oportunidade para expressão.

Ato contínuo, essa vontade de soltar a voz é exercida pelos artistas, que recomeçam a entrar no palco e sair, sempre correndo. A cada entrar e sair, param ofegantes em frente ao microfone e falam como se houvesse urgência em contar um pouco sobre si, dar seu testemunho, mas quase sempre a frase é interrompida e vão embora. Correm contra o tempo no teatro, tal como nós, na vida. Suas palavras e gestos nos levam a transitar entre o que acontece à nossa frente e as imagens de um mundo exterior (ou interior) que criamos a partir de seus discursos. Através de uma trama meticulosamente construída, o real vai negociando com o imaginário.

Fui plateia em muitas outras peças apresentadas no Festival Panorama 2016, mas escolho escrever sobre aquelas que, a meu ver, mais intensamente “jogaram com o espectador”. Nesse sentido, Batucada, de Marcelo Evelin, é prodigioso. Não há palco ou plateia, caminhamos todos juntos por salas do Museu de Arte do Rio de Janeiro. O número de performers e espectadores é quase igual, somos muitos. Os primeiros usam mascaras pretas, nos encaram seriíssimos, ameaçadores até, e nos perseguem com bastões de madeira na mão. É preciso circular, circular. Agarramos os fios dos balões vermelhos em forma de coração que pendem do teto, um contraponto oferecido pela cenografia da obra, nossa salvação.

Em seguida, os performers iniciam uma passeata por entre as salas, batendo em panelas e latas com os bastões. Nós os acompanhamos, formando com eles uma multidão. Atenção que apontar “nós” e “eles” é a minha escolha para relatar o acontecimento, pois há momentos em que a participação do espectador se entranha de tal modo na performance que podemos dizer que se tornou um grande “nós”, uns com máscaras, outros sem.

Aos poucos, os performers vão tirando as roupas, o barulho se intensifica, nos afastamos. Com preciso deslocamento em conjunto, seus corpos dividem uma das salas do museu em dois espaços. A esta altura já estão todos nus. Nós, espectadores, ficamos separados por esse muro humano, enquanto eles batucam com vigor, por longo tempo, as panelas e latas. O som da batucada, muito, muito forte e que não para, não para, incomoda. “Não suporto tanto barulho”, diz uma amiga, “vou embora!”. Fico surpresa, mas constato que ela tem razão. Não preciso continuar aqui, posso sair. O formato da obra nos oferece essa opção. Sem lugar definido para o público, que circula por entre os artistas, podemos simplesmente tomar o rumo da porta de saída, sem constrangimentos. Despeço-me dos amigos. Entretanto o batuque para, e o silêncio daquele muro humano é também insuportável. Decido ficar. O tempo está suspenso. Quero esperar para ver o que vem depois.

A obra de Evelin é política, faz emergir nossas escolhas, nossos gestos, nossas tomadas de posição. Provocar o corpo indivíduo, o corpo multidão, seus movimentos e sensações, é o destaque da obra.

Retomam o batuque, preenchem todos os espaços. Pelados, arrastam seus corpos suados em nós, é engraçado, é estranho, quero ir embora. Mas de novo não consigo, pois eles agora descem a escada de saída e temos que seguir seu ritmo. No térreo, diante da porta da rua, se jogam de bruços no chão. Tenho que passar, acho brechas entre os corpos. Penso em todos os corpos vulneráveis, em nossos corpos vulneráveis, sobre os quais passamos por cima diariamente, pois precisamos ir.

Looping Bahia overdub, de Felipe de Assis, Leonardo França e Rita Aquino, também foi apresentado em um espaço que pode parecer inusitado para alguns, uma sala do Centro Cultural Banco do Brasil. Mas quem acompanha o Festival Panorama há algumas edições já notou que a dança, ao se aproximar da performance, tem ocupado com frequência locais que extrapolam as usuais salas de teatro.

Ao entrarmos na sala, nos deparamos, porém, com algo diferente do que esperamos de um espetáculo de dança. Não resta dúvida de que ali acontece uma festa. A iluminação se assemelha, para mim, àquelas de festas de rua, com lâmpadas penduradas em cordas que cruzam o teto. Já para minha amiga, anos mais jovem, o clima é de luau. Tem DJ, tem som alto, tem gente abraçada. Mas que gente é aquela? Os performers? Os espectadores? Tudo realmente misturado, nada distingue uns e outros. Essa gente segue abraçada, andando/dançando/marchando pelo salão. Tem um espírito de arrastão no ar. Quem está encostado na parede, só olhando, é convidado/atraído/impelido a participar.

A coisa toda está começando e, para “bombar”, uma festa depende mais dos convidados (nós), do que dos donos da festa (nesse caso, os artistas). Vale ressaltar que ambos são, de alguma forma, ligados à dança. Os convidados de agora provavelmente se apresentaram em outra noite do Festival Panorama. Ou em uma edição anterior. Muitos são artistas ou estudantes de dança. Posso contar nos dedos os que, naquela sala, não fazem parte da galera da dança, performance ou teatro contemporâneo.

Estamos nos últimos dias do festival e, com tanta gente conhecida (e que adora dançar) na pista, a festança se instala. Lembro ter escutado, lá no início do espetáculo, um som de reza, de procissão, a combinar com aquelas luzinhas trespassando o teto da sala, que me remeteram a festas populares religiosas. Não habituada à mistura entre religião e profano das festas de largo da Bahia, estranho. Essa referência me é apresentada depois, e acredito que foi bem utilizada no espetáculo, apesar de a festa como brincadeira ter ressoado bem mais forte em mim.

O final, apoteótico, é ao som de axé como num trio elétrico da Bahia. E todos dançam como se não houvesse amanhã. A dança contemporânea tenciona mais um limite. Além de dança/teatro/performance/vídeo, agora também festa.

Para corroborar com essa minha impressão, destaco o espírito festivo que tomou conta da plateia do espetáculo de Jérôme Bel, The show must go on, apresentado no encerramento do festival, no teatro Carlos Gomes. A distância física entre palco e plateia, característica desse teatro, que muitas vezes dificulta maior interação entre artista e público, não impediu que uma grande celebração ocorresse. A equipe do coreógrafo selecionou 20 intérpretes do Rio de Janeiro, não necessariamente profissionais da dança, para a apresentação da peça. Assim, várias pessoas que conhecem o elenco estão na plateia. Além disso, músicas ícones da cultura pop, coreografias que as representam literalmente e situações engraçadas compõem a dramaturgia. O resultado é uma experiência coletiva de reconhecimento e divertimento, a plateia respondendo ao que passa no palco como um só corpo.

A estratégia de implicar a plateia durante a execução de uma obra tem aparecido com frequência nas manifestações artísticas, seja com ênfase estética, ética ou política. Os espetáculos que aqui menciono acionam variados dispositivos para esse fim. Incluir o espectador na ação não se restringe a colocá-lo em cena ou provocar seu corpo a reagir a um chamado, como ocorre em Batucada e em Looping Bahia overdub. Em the The show must go On, as escolhas feitas para o espetáculo (música pop, coreografias triviais e elenco escolhido na cidade) também são um convite à participação da plateia, que poderia estar no palco, e reagiu como se estivesse. Já em O que fazer daqui pra trás? os performers quase não interagem entre si. Eles contam suas histórias dirigindo-se a nós. Somos convocados a seguir seu ritmo e a imaginar as imagens que criam.

Se, por um lado, os coreógrafos procuram envolver os espectadores na dramaturgia da cena e apuram suas habilidades para isso, por outro, as diferentes subjetividades que formam uma plateia se traduzem em múltiplas reações e reflexões. Essa inter-relação enriquece o acontecimento, que é a obra em ação, e suas reverberações tanto nos coreógrafos e performers quanto nos espectadores.

Não esqueçamos, porém, que criadores que repetem fórmulas que deram certo correm o risco de empobrecer a obra e, claro, sua recepção. Do mesmo modo, é bom lembrar o público especifico ao qual me dediquei nesse texto – aquele que frequenta os teatros da cidade do Rio de Janeiro para ver dança contemporânea, presente no Festival Panorama. É preciso dizer que se trata de um público majoritariamente composto por pessoas do campo da dança. Qual a consequência disso? Fica o convite para o debate. Há muitos desdobramentos dessa discussão que não poderei desenvolver aqui. Mas suponho que a baixa diversidade do público pode resultar num cenário com poucos desafios e sufocante. Por isso destaco a importância de iniciativas que ampliam o alcance das obras contemporâneas, como vem fazendo o próprio Festival Panorama, com programas de formação de plateia. O Laboratório de Crítica, do qual faço parte desde 2013, corrobora nesse sentido, ao fomentar pensamento crítico sobre as obras e ao agir, através de textos e discussões, para além do ambiente estritamente artístico e acadêmico.