Na Rua, no Circo, no Panorama

Foto: CLAP /

 

A Cia. Híbrida apresentou dentro da programação do Panorama, na arena do Circo Voador, o espetáculo Olho nu, parte final, mas não conclusiva, de uma trilogia de espetáculos que visa a discussão sobre as fragilidades e potências dos dançarinos e dançarinas de danças urbanas. Mais do que fechar uma série de espetáculos que giram em torno de uma proposta, a Cia. realiza o difícil e importante trabalho de repensar a cena para os corpos e para as estruturas das danças urbanas.

Historicamente, as danças urbanas ligadas à cultura Hip Hop não nascem dentro de teatros. Nas ruas, nos bailes, nas ballrooms, em shows, nas salas de aula, as danças urbanas têm diferentes origens. Mais recentemente, levá-las para dentro de teatros tem sido muito usual e este fato tem possibilitado diferentes experiências para coreógrafxs e intérpretes. Desse modo, pensar em como essas danças podem acontecer cenicamente é sempre um processo muito interessante. É exatamente isso que Renato Cruz e sua cia. propõem: uma cena que se pensa e fala sobre o fazer próprio das danças urbanas, passando por suas questões, seus clichês, suas estruturas constitutivas, criticando-as e encenando seu esgarçamento na frente do público. O macro e o micro da dança são trazidos para a cena e dão tom à obra, que funciona exatamente através do modo como essa macro e micro universos dialogam. O macro fala sobre as danças em si, sobre o que une aquelas pessoas ali, que é esse vasto mundo das danças urbanas. O micro traz em si cada dançarino e dançarina, suas questões, suas danças, tudo aquilo que eles e elas fazem muito bem (ou não). E tudo isso desvelado à vista de um público que não necessariamente precisa conhecer dança urbana para ver esse raio X do movimento e do corpo que dança.

Os figurinos são escolhidos pelo público antes do espetáculo e praticamente não há músicas, elementos cênicos ou desenhos de luz. Apenas xs intérpretes. A Cia. Híbrida explora suas possibilidades cênicas ao trazer para o palco algumas das estruturas que dão corpo à dança urbana: o virtuosismo, a quebra da barreira entre artista e público, o divertimento. Com coreografias coletivas e individuais, momentos mais e menos agitados, há uma busca para transformar a cena em algo que seja particular, próprio do fazer das danças urbanas.

Vemos artistas dançando lado a lado com o público, sem cortinas ou coxias e nos deparamos com intérpretes que por vezes apenas admitem que não sabem fazer a dança de um ou uma colega de cena. Olho nu nos coloca dentro do fazer da dança. E, melhor, dentro deste fazer específico que acontece ali, naquela obra e naquele momento, de modo quase expositivo. Mas o que chama nossa atenção, talvez num segundo olhar (e esse, sim, nu) sobre a obra, é como as proposições sobre esta potencial cena para as danças urbanas não são, necessariamente, novas ou inéditas. O modo como as coisas operam é exatamente um modo que vai ao encontro de danças já há muito conhecidas. Num primeiro momento, é como se a sala de ensaio, é como se a rua invadisse o palco. Mas não. Por mais que se proponha um desvelamento, a encenação ainda está lá. A segurança do teatro (neste dia, o Circo Voador) ainda está lá. Não há um molde em que se encaixe, mas ainda assim, estruturas são transportadas para o modo de se dançar dança urbana e que, não absolutamente, dialogam com a dança urbana que se pretende dançar ali naquele momento e que se dança em todos os outros momentos. Desvelar, nesse sentido, pode funcionar como uma armadilha para uma não realização. É como se eu mirasse no que eu quero e acertasse no que eu já conheço, o que, nesse caso, é a forma de criar a cena em dança. Pretende-se a descoberta, mas o que vemos são corpos treinados nos mostrando algo já esperado, porque conhecemos o jeito que a cena proposta é construída.

Xs dançarinxs brincam com as suas sessions, suas partituras de movimento, que são sempre muito específicas e que dialogam com o que cada pessoa consegue fazer de melhor em termos de movimento. “Mas e se eu fizer a session de outra pessoa? Será que eu consigo? Será que eu sei como fazer? E qual é o cheiro da minha session? Qual é o som que ela faz?” Essas e outras questões são trazidas para a cena, dando lugar ao caráter jocoso sempre muito presente nas danças urbanas. Nesses momentos é possível pensar em vulnerabilidades expostas, mas como pensar nas reais vulnerabilidades de algo que é previamente fechado e hermético? Dançar num ambiente controlado é uma prerrogativa da dança cênica e que, nem de longe, é algo que está (ou esteve) nas raízes das danças urbanas. Entender o urbano é entender o que se dá no aqui e agora do dançar. Um corpo que improvisa, um desafio inesperado, o som que vem de um bar, os diferentes controles e descontroles que o urbano nos dita.

Renato Cruz e a Cia. Híbrida nos propõem, na medida do possível, uma entrada em seus processos e estruturas de fazer dança. Quase dá para acreditar em tudo. Aprendemos seus nomes, suas coreografias, suas falhas. Ficamos quase íntimos daqueles artistas; e dá pra sair do teatro com sentimento de função cumprida, mas também com uma pulga atrás da orelha.

 

Gabriel Lima é Licenciado em Dança pela UFRJ. Professor e pesquisador de dança afro-brasileira, com interesse pelas relações entre danças dos Orixás e gênero. Participa do Festival Panorama desde 2014, já tendo atuado como estagiário, dançarino e colaborador do LabCrítica. Participou do livro Performar Debates, que reúne textos produzidos durante as imersões do Laboratório de Crítica no Festival Panorama, edições de 2012 a 2016.

 

© Texto produzido durante a Imersão LabCrítica no Festival Panorama 25 + 1. <<Saiba mais!>>