Kodak: memórias contadas por fotografias

Não faz muito tempo, conversei com uma amiga sobre certas mudanças de valores da nossa infância nos anos 90 para a de agora. O assunto específico era o fato de como criávamos expectativa sobre quando os filmes iam sair em fita VHS nas locadoras e de como era frustrante chegar lá, descobrir que já estava tudo alugado e ter que perguntar para os funcionários quando uma das cópias chegaria para, então, fazermos uma nova tentativa. Também falávamos sobre como era um grande evento alugar um ou dois (com sorte de convencimento dos pais) filmes para se assistir no fim de semana. Era toda uma preparação paras as noites de cinema em casa, a pipoca, o Guaraná ou a Coca-Cola, e, ainda, se ia um coleguinha em casa, com muita alegria pedíamos pizza, e a família toda se reunia na frente da televisão de tubo pra assistir ao tão esperado filme.

Essa emoção de alugar filmes para se ver em casa ainda se estendeu na era do DVD, mas já com uma espera não tão longa, de meses. Atualmente, não existem mais locadoras, há raramente uma pequena que conseguiu sobreviver, mas a situação é que tudo se tornou banal. Estamos na era do YouTube e dos canais sob demanda, como Netflix, que produzem conteúdo para internet a fim de serem consumidos num computador, numa smart tv, num tablet ou mesmo num celular. As pessoas já não se reúnem como antes para assistir a filmes, não existe mais a expectativa de quando um lançamento chegará às locadoras. Alugar filmes, pra mim, era algo especial. Hoje em dia, mesmo sendo cineasta, quase não vou ao cinema e tampouco alugo filmes, de forma que esses acontecimentos viraram apenas memórias de bons momentos da infância.

O espetáculo Kodak, que consiste num resgate de memórias do artista brasileiro Neto Machado e que traz, além disso, essa questão da passagem do tempo, me fez lembrar dessa conversa. Acredito ter quase a mesma idade de Neto, porque foram momentos de pura nostalgia a cada elemento que aparecia no palco e que me lembrava algum momento da infância. Neto Machado ainda coloca em discussão os estereótipos de gênero fortemente presentes no universo infantil, como as cores e os brinquedos de menino e menina.

Interessante pensar que o espetáculo fazia parte da programação Panoraminha, ou seja, voltado para o público infantil. As crianças que estavam ali presentes não têm a mesma memória afetiva que eu e as crianças dos anos 90, portanto, decerto não se relacionaram com as referências ali colocadas da mesma maneira, mas isso não importa, porque as crianças amaram o espetáculo e, no final, foram muito empolgadas conversar com Neto.

As crianças da presente geração, embora não tenham tido as mesmas experiências, estão vivendo um momento de questionamento dos brinquedos para meninos e brinquedos para meninas. Em nenhum momento se ouviram risadinhas quando o artista brigou com o boneco e depois o beijou ou quando foi embora de mãos dadas com o boneco Ken da Barbie. Dessa forma, o espetáculo nos leva a pensar sobre as mudanças de valores das gerações. No micromundo criado por Neto Machado (que acontece no tempo de agora, mas também parece falar de outro tempo), já se pode brincar com todo e qualquer brinquedo que se quiser. Esse micromundo é bem diferente do que vivi nos anos 90, quando havia muito mais polêmica.

Voltando à discussão da passagem do tempo, chamo atenção para como Neto Machado apresentou os elementos no palco. O cenário era construído apenas com pastas bem grossas, para se guardar arquivos. As pastas eram todas coloridas e sempre montadas de formas diferentes, criando espaços e universos variados. Em dado momento, Neto constrói a barra de cores dos filmes VHS em fileiras de caixas e, em seguida, ouvimos o bip de quando aparecia essa primeira imagem nas telas de nossas televisões (esse provavelmente foi o momento em que comecei a pensar nas mudanças).

Assim como os filmes em VHS e em DVD já não tomam espaço em nossas estantes, as fotografias também perderam espaço, no sentido físico da palavra. Antes tínhamos no máximo 36 poses para fotografar, agora, com o celular. podemos tirar inúmeras fotos e apagá-las se nenhuma ficar “boa”. Antes guardávamos inúmeros álbuns de fotos e agora temos cartões de memória e a Internet. Havia ainda aquela expectativa do filme ser revelado, coisa que demorava uma semana (com o tempo, essa espera passou para apenas o dia seguinte ou até uma hora naquelas cabines de revelação, mas aí a qualidade já não era a mesma). De qualquer modo, a fotografia se tornou algo tão banal que até o que as pessoas comem elas estão postando no Instagram, uma plataforma online de fotos que tomou o lugar do álbum de fotos.

E veja eu agora, escrevendo esse texto no aplicativo de documentos no meu smartphone e não no meu caderninho, no qual eu achava que escrevia mais fácil. Isso mudou já faz um tempo, agora faço quase tudo pelo celular: vejo meu e-mail, entro nas minhas redes sociais, tiro fotos e posto no Instagram, escrevo e leio textos, faço compras, pago contas etc., ou seja, minha vida está no celular, assim como a vida da maioria das pessoas que possuem um smartphone.

Atentando-se ao título do espetáculo de Neto Machado, Kodak foi uma grande marca de filme fotográfico que revolucionou a fotografia e foi também a inventora da foto digital. Ironicamente, faliu por não conseguir acompanhar a evolução das câmeras digitais, apesar de hoje em dia estar novamente investindo nessa tecnologia. Na obra de Machado, quase tudo acontece em velocidade stopmotion, técnica de imagem que consiste no uso da fotografia em sequência: os movimentos ficam mais mecânicos e sutilmente pausados. Neto Machado se movia em stopmotion, como se fossem milhares de fotografias contando aquela história, e fazia ainda o barulhinho do clic da câmera.

O espetáculo é bem feliz no que diz respeito ao alcance de público, porque consegue cativar e atingir todas as faixas etárias, cada grupo se prendendo à história por algum motivo, seja pelas cores, pela técnica, pela identificação, pela narrativa etc. A verdade é que é um lindo espetáculo.