Hu(r)manidade

O espetáculo da coreógrafo português Marco da Silva Ferreira, que se apresentou nos dias iniciais do Festival Panorama 2015, Hu(R)mano, certamente chama a atenção por seus movimentos fortes, precisos, e pela trilha sonora digna da melhor festa de música eletrônica. Mas Hu(R)mano não é apenas sobre movimentos de difícil execução, é também sobre o lugar do ser, humano ou não.

Cabeças, a princípio sem corpos, se encontram, testas e queixos se tocam e em poucos movimentos se reorganizam. Aquele que estava embaixo agora se encontra por cima, depois no meio. E não é assim que as relações são? Humanas ou não?

Logo de início, ouvimos carros passando em uma rodovia pouco movimentada, como em uma das grandes rodovias quase abandonadas de um imenso país. Em ritmo constante, sons instrumentais e cotidianos se misturam. Em contraposição ao hábito sonoro de uma cidade, o esquema corporal dos bailarinos parece estar falando de algo mais selvagem que civilizatório. Movimentos que lembram imagens de pássaros e répteis tomam a cena. Vemos as relações biológicas de cooperação e simbiose entre esses animais, vemos a caça e o medo. O hábito e a repetição estão ligados àqueles corpos-animais, que rastejam e murmuram.

No segundo momento do espetáculo, os corpos trocam sua carapaça animalesca por uma corporeidade humana. A fala, mesmo que inaudível, entra em cena: corpos bípedes gritam, contestam, reivindicam. O homem, o animal racional de Aristóteles, aparece como o fim da linha de evolução. A força de movimentos precisamente sincronizados dá o ar de “Tempos modernos”. As engrenagens trabalham em conjunto, ao mesmo tempo em que lutam contra algo que se encontra acima – os olhares estão sempre direcionados a uma diagonal alta, nesse momento –, contemplam com dúvidas e desprezam com rancor um “isto” superior. Quer seja deus, que lhes deu a condição humana, quer seja a “mão invisível” que controla suas vidas.

De súbito, todos os sentimentos se apazíguam. A música forte, intensamente marcada, retoma o ritmo lento e constante do início. O que tinha de homem construído e evoluído se desmonta. Os corpos-animais retornam e com eles, o riso – aquele outro aspecto definidor do homem-animal-que-ri. O riso pueril das crianças brincando. A criança, o mais animal do homem, aquela que ainda não conhece as regras do jogo, a que ainda rasteja pelo chão. O mais animal do homem, ou o mais humano?