Exaustos, paisagens e acontecimentos: a catarse! (second)

Foto: CLAP  /

 

“On and on, the beat goes…”
Madonna, Beat goes on – Hard Candy (2008) [1]

 

 

Ainda ao som da rainha pop, seguimos. Não queremos perder o ritmo, ou queremos? Indo e vindo, a batida continua [2]. Madonna aqui fala da repetição exaustiva e, apesar de Inside of me [3], o segundo experimento pede outra fração de texto, especificamente por sua dramaturgia ambígua. A exaustão da cena pode servir tanto à criação de imagens e acontecimentos quanto à sua impossibilidade. Pois se exausto eu continuo me exaurindo, tenho de lidar com o inferno da continuidade, quase como num transe de exaustão. A catarse de um corpo em repetição e disrupções pode, então, se desviar de uma ativa participação do público e dos acontecimentos em sequência, escapando às relações possíveis, mesmo que não as abandone por completo.

Na verdade, ainda estou em dúvida se aqui o conceito de experimento consegue substituir, de fato, a ideia de espetáculo cênico. Se por um lado o público participa ativamente da experiência estética, reconfigurando os corpos em cena, não se assume, contudo, uma contiguidade. E se parecemos objetos de uma cena cujo ritmo está determinado, também nos tornamos, em alguma medida, sujeitos observadores de objetos cênicos: os performers. Mas tudo isso se confunde quando os corpos em movimento começam a se afetar mutuamente no espaço [inclusive o público]. Eles se tocam, apesar desta relação apenas subsistir. E, bem… ela se configura à beira do impossível! Porquanto os corpos que acabaram de chegar já estão a ir, escapando-nos por entre os dedos [dos pés], do entendimento, de qualquer associação. São corpos em fuga intermitente.

Apenas a expectativa de uma catarse, numa tragédia, seria capaz de, mesmo tendo os performers ao nosso lado, ou aos nossos pés [fora do palco], impedir-nos de uma relação menos hierárquica com os corpos da cena. Ou seja, ao esperar por algo que vá romper com o clima de tensão instalado na dúvida, por meio da repetição de estados corporais, a obra fixa uma atmosfera cênica. Numa dramaturgia que resgata heranças da tradição grega, o que permanece, então, é uma estética da impossibilidade, o desatino de um corpo que luta contra o próprio destino em cena. A catarse chega, então, como uma finalidade dramatúrgica. Ela se concretiza enquanto plano de fuga para onde se projetam o drama ou o horror da experiência estética:

 

Na poética de Aristóteles, [a catarse] designa um dos traços fundamentais da tragédia: ao inspirar, por meio da ficção, certas emoções penosas e malsãs, especialmente a piedade e o terror, a catarse nos liberta desses sentimentos dolorosos; o efeito moral e purificador despertado pela tragédia clássica, na Grécia Antiga, onde as situações dramáticas, de extrema intensidade, traziam à tona os sentimentos de terror e piedade aos espectadores, proporcionando o alívio ou a purgação desses sentimentos; purgação; purificação; catársis (TEIXEIRA, 2009: págs. 70 e 71) [4]

 

A definição do crítico maranhense Ubiratan Teixeira demonstra como a estrutura trágica clássica propõe moralidade e catarse ao público. O resultado vem de uma intensa disputa de poderes, cujos personagens não possuem condições de vencer, culminando na desistência ou na morte. Estas figuras, que ascendem ao modelo dionisíaco clássico por meio dos arquétipos gregos, conduziram historicamente as experiências cênicas do ocidente a modelos mais brandos de espetáculos trágicos [vide o drama e o romance]. Interesso-me por contrapor essas configurações herdeiras da tragédia às relações experimentais estabelecidas entre os corpos na cena em questão. E por isso, continuarei com a imersão sensível às minhas experiências em jogo cênico, trazendo os haicais de outrora, sem, no entanto, abandonar a ambiguidade intrínseca: espetáculo de uma tragédia ou experimento cênico? Ambos?

 

Era Sísifo ou Orfeu?

vi alguém descendo

a ladeira da morte

 

– [presente]

Chove muito. A cidade completamente cinza. Ando pelas ruas do centro do Rio em busca da Escola de Cinema Darcy Ribeiro. No saguão principal, Cristian Duarte [5] exibe a coreografia Ó [6]. Outro resultado da residência artística Lote [7], sediada em São Paulo. No experimento/espetáculo, o coreógrafo paulista se interessa em estabelecer o que chama de “dramaturgia tátil”, partindo de modulações afetivas e de uma ênfase no movimento como disparo sensorial. Em resumo disponível ao público, explica seu interesse pelo minimalismo na dança contemporânea, na tentativa de anunciar um afastamento do ideário trágico de que está impregnado o mito grego de Orfeu e Eurídice, base da criação de Cristian nesta cena específica. [Um afastamento. Será?]

Por algum motivo, decide-se atrasar o experimento [sic] em algumas horas. Suponho que em busca de uma luz mais apropriada. A escola, localizada num antigo prédio dos Correios, possui grandes janelas verticais, por onde escapa muita iluminação. À medida que o crepúsculo se aproxima o espetáculo [sic] começa. Num cenário de abandono a la início do século XX, entramos num saguão cheio de colunas, com várias portas de madeira, todas fechadas. Logo que se forma uma aglomeração de público, surge um corpo feminino rodopiando pelo chão. O movimento cessa quando a performer esbarra em algo. Paredes, portas, pilastras. Ela se choca com qualquer objeto à vista. O movimento é interrompido várias vezes, mas o corpo insistente não demora a retomá-lo. Como um pêndulo, ela vai e volta em múltiplas direções. Em seguida avisto outro corpo, agora de um homem, repercutindo a mesma movimentação. Orfeu e Eurídice, dois pêndulos a nossos pés.

 

Hades convida 

à exaustão 

um desejo de lhe escapar

 

Então o desespero dos pêndulos aumenta, atropelando o que estiver pelo caminho. Ambos os performers se chocam com pessoas no saguão, criando loopings de esbarrões e encontros. Ao tocar esporadicamente nas pessoas, elas também tomam iniciativa: umas se colocam no caminho, como obstáculos, outras fogem da aparição repentina, algumas assustadas. Noutras tantas vezes, o público também é surpreendido de costas, sem observar a chegada do pêndulo-humano. Criam-se pequenos acontecimentos dos esbarrões, entre sustos e surpresas. O público está em movimento com os performers, numa configuração cênica que se dá pelo toque. É t-á-t-i-l.

A cena parece ir se projetando num estado de construção coletiva. As direções dos performers estão diretamente relacionadas a quem se interpõe em seu caminho [ou não]. Todos estão em movimento no saguão, decidindo ou se abstendo sobre o destino de Orfeu e Eurídice [ou apenas daqueles corpos em cena, como preferirem chamar]. De obstáculos, também passamos a ser respiros, desvios de caminho. Pessoas se juntam a fim de parar e estabilizar os corpos em desespero. É angustiante vê-los sem direção. Na repetição exaustiva, surge um som underground que toma o ambiente. Não lembro que horas começou a tocar. A ascensão da penumbra aumenta os vultos e, de repente, talvez estivéssemos no submundo do qual Orfeu e Eurídice tentaram escapar. Sim, o inferno!

Adaptação do mangaká japonês Masami Kurumada para o mito de Orfeu e Eurídice, na publicação de Saint Seiya (1986 -1991, 28 Tankōbon).

O impactante da imagem crepuscular acompanha a repercussão da cena de Ó a partir da proposição de Cristian sobre dramaturgia tátil. Toda sorte de obstáculos para os corpos em movimento resgatavam a paisagem deslumbrante e cíclica do mito de Orfeu e Eurídice. Nós, as pernas, os braços, as paredes, colunas, portas, qualquer coisa que não fosse capaz de estancar as repetições exaustivas e os gatilhos sensoriais de movimento dos performers. Qualquer coisa que não fosse capaz de lhes escapar ao toque. Nós, o inferno deles. Ou nós todos no inferno. Difícil chegar a conclusões. Mas esta chave [o encontro da trágica atmosfera em que se dá a coreografia com as paisagens formadas com a participação do público naquele saguão macabro] parece delinear imagens além daquelas planejadas pelo diretor. E se a dramaturgia intenta um afastamento da tragédia mitológica, como atesta Cristian em sua sinopse, refuto-a neste texto recontando brevemente a história do casal de amantes. A cena trágica, então, mais uma vez anunciada.

 

um apego

plástico

ao defunto

 

Orfeu perde sua amada Eurídice picada por uma cobra. Por amor, desce ao mundo dos mortos a fim de buscar a esposa. Eurídice era muito bela e morreu durante uma fuga, perseguida por um homem que não aceitou sua recusa. Ao chegar ao trono de Hades, a melodia da lira de Orfeu é capaz de amolecer até o coração de ferro do deus da morte, que concede a permissão de trazê-la de volta ao mundo dos vivos. Mas com uma condição: que o belo rapaz não olhe para trás, a fim de se certificar da presença de Eurídice. Entretanto, quando está perto da saída do mundo dos mortos, Orfeu sente medo de ser enganado por Hades e tenta espiar atrás de si. Assim, vê apenas o vulto de Eurídice, que lhe escapa do horizonte. Com a desaparição da amada, o trágico fim de Orfeu se cumpre com o assassinato que sofre no mundo dos vivos. Mas, por ser filho de Apolo e esplêndido argonauta, é enterrado no monte Olimpo. O belo casal se encontra, enfim, nos Campos Elíseos, onde vive feliz após a morte. Ah, os gregos e suas histórias…

Muito difícil não se remeter ao mito se ele está na sinopse do trabalho e é base para o acontecimento cênico. Por mais que a ambiência trágica seja recusada, os símbolos que permeiam a aventura de Orfeu e sua perda repercutem na relação dramatúrgica criada entre os corpos para a cena. A ideia de “não olhar para trás”, aqui, ganha outras dimensões, talvez a de não prever o tempo ou o que vem em seguida. Sempre na expectativa de um acontecimento [ou catarse], seguimos os corpos rodopiantes no chão num eterno interlúdio – a saga vazia, sem começo nem fim. Daí, percebo os símbolos formando uma atmosfera a partir da exaustão, da repetição da célula coreográfica. Estar no inferno talvez seja a própria tentativa de escapar sem olhar para trás. O tempo demora a passar enquanto estamos nessa fuga ou tentativa. É um estado cênico, que ativa operações de corpo e paisagens, composições. Mas não as deixa fruir, pois se fixa nessa atmosfera, que nos impele ao desejo de saber quando enfim acaba, ou muda.

A repetição é exaustiva. Os corpos não param de rolar pelo chão na penumbra. Uma verdadeira suspensão. Olhar para trás, então, passa a ser uma metáfora usada por Cristian como um estado de interrogação do tempo, de sua matéria e consequente passagem. Passamos muitos minutos da cena centrados na angústia de “não olharmos para trás”, evitando uma possível surpresa ou à espreita dela. E assim que olhamos [para trás], acaba [catarse]. Acaba ou continua? Bem, no caso de Orfeu é seu fim… Antes do fim, contudo, estamos cenicamente inseridos numa pergunta sobre a duração do tempo. E a penitência não se afirma em seu início. Ela dura em sua reiteração. Doravante, tudo aquilo que tenta impedir os performers de continuar sua saga não os afeta a uma mudança de estado corporal. Pois não causam o fim, a finalidade cênica. Lembro-me do instante em que uma roda se forma em torno dos dois performers [ainda rolando pelo chão] e de lá eles não conseguem sair. Um cerco, até que um deles para de rolar, senta, e abre espaço na roda, a fim de voltar a seu estado corporal longe daquela configuração. Todos se afastam e a roda se desfaz. Senti como se, às vezes, o público estivesse interrompendo alguma coisa. E estava, ao limitar os movimentos dos performers à roda. Mas, talvez, também estivesse atrapalhando um cenário trágico prestes a se instalar, mesmo que este nunca tenha se consolidado de fato. Uma brincadeira entre o controle da dramaturgia e a possível abertura aos acontecimentos com o público.

Dúvida, agonia. Símbolos mitológicos formando uma atmosfera cênica, corpos coadunando-se em acontecimentos. Contratempo. Em vários momentos me afasto dos performers, noutros dou minha perna como consolo [sinto a resposta e a pancada/carinho na pele, não penso muito antes de decidir, afinal, vem alguém vindo na minha direção], ou sou eu mesmo o obstáculo. Depois de algum tempo, sento ao chão e espero que o corpo venha até mim. Mas não há uma expectativa pela chegada. Quero um pouco de paz do rolo compressor, de todo aquele desespero elétrico que se repete. E repete. Tantos estados emocionais quanto múltiplas as inconstâncias ativadas pela aparição seguinte. Fujo o quanto posso. Mas, mesmo isolado, vem alguém vindo, está rolando em minha direção. E me toca.

É   t-á-t-i-l   o   d-e-s-e-s-p-e-r-o   e   a   d-ú-v-i-da.

 

solta-me a perna

ao chão

numa leve carícia

 

Algumas pancadas, de tão potentes, abrem portas de madeira que estavam fechadas no início da apresentação. É assustador. Num choque específico, a performer talvez seja a causa de um problema de som, ao esbarrar nas fiações dos sonoplastas. E alguém vai tentar proteger a moça, que poderia ter se machucado. Mas o estado de corpo não cessa. Continua, exaustivamente. Parece até proposital que nem mesmo uma sinfonia dê conta daquilo que os corpos podem fazer. E a música para. No caso de Orfeu, nem sua lira foi capaz de lhe salvar do inferno. A cena, ela mesma em risco desde o início. Várias ações não coordenadas e, daí, acontecimentos. Estados invernais. Não imagino quão duro deva ser manter um estado de corpo como aquele, exaurindo-se catarticamente. Sinto pena do esforço, me angustia não ver outra alternativa de movimento. Quando acaba? Não dói, não machuca? Qual o limite? Não poder fazer nada e ao mesmo tempo ser pino disso tudo. Ser o pé que, de pé, vira o pontapé inicial do corpo em rodopios pelo chão. Sinto pena de Orfeu e Eurídice, sinto pena dos performers, sinto pena de mim, naquele in[f/v]erno.

Pena? Não é seu problema, but its inside of me.

 

rompe o fio

que os ligava

e a luz se foi

 

Quando penso que qualquer coisa seria muito irrisória ou devastadora [extremos] para romper com tanto tempo imersos na mesma composição, eis que os performers se levantam do chão. Estão rijos e tensos, apenas um fio os liga. Até que não mais. Fim. A penumbra toma o rosto de Eurícide, a qual todos somos conduzidos para olhar no final. Eu estou de costas, tenho de virar para trás. Sem luz, o corpo se transforma num vulto diante daquelas grandes janelas do saguão. O fio está com ela. E se vai. Não há dúvidas do mito em cena. Também não há dúvidas de que é outra coisa. Talvez por ser dança mesmo e, em si, não se operar com o lugar comum da dramaturgia, uma dramaturgia tátil faça mais sentido. Tátil e espectral, at the same time. Tátil e trágica, althought your scene thoughts.

Vejo apenas várias imagens em fuga. Quero eu também fugir. Esvaziado, exaurido, exausto. Paisagens de novo, agora fruindo, pois acabou a repetição exaustiva. Acabou… que saguão sombrio! Os vultos se foram… Mas ainda intimamente ligado, atravessado, como parte de acontecimentos que não se repetirão, pois a mimese é o que menos importa nessa experiência estética. O espaço e a relação com os espectadores [sic] serão outros da próxima vez. Os corpos em cena estão em deslocamento e toque, apesar do desajuste no encontro entre eles. E configuram qualquer outra coisa entre quatro paredes, menos um palco. Entretanto, não há ilusões: o controle de cena se sobrepõe ao acontecimento. Gera catarse. Mas nem mesmo esta é o que ousa a tradição. Uma catarse comedida, crepuscular, duvidosa de si mesma. Nela, há vazios, silêncios, conjecturas, espera. Não há tragédia clássica, mas há tristeza. Talvez, apenas relances trágicos numa dramaturgia de corpo. Vestígios que confundem o diâmetro espetáculo-experimento.

Assim que acaba, não consigo aplaudir. Apenas com os performers à vista. Sigo com provocações de toda ordem. Me pergunto se o diretor se submeteria ao mesmo estado de corpo e a tantas provações físicas. Mas sem moralismos, afinal, Ó é resultado das residências do Lote, espaço que “tem por princípio estimular práticas de trabalho compartilhado”[8]. A questão ética é apenas uma provocação em forma de devaneio: submeter um corpo àquilo que eu não aceitaria fazer, ainda mais se for arriscado, faz parte da economia secular da dança. Economia de coreógrafos sobre bailarinos. Mas não é só trabalho: é corpo. Lembro bem das tiras de esparadrapo, aparentemente para não machucar as mãos. Será que não machucam mesmo? Tanto tempo rolando…algumas vezes parece doer. Mas será a cena? Eurídice e Orfeu? A tragédia em seus esconderijos contemporâneos? Corpos exaustos? Ou o problema sou eu? Its me, only inside of me?

Estive exausto do esforço. E dessa exaustão vi imagens. Estive no inferno, chovia, Eurídice e Orfeu, ninguém. Eu mesmo sozinho e o corpo daquele moço acariciou a minha perna. Eles estavam se chocando inúmeras vezes na parede, pareciam se machucar. Estou na rota deles de novo, quero fugir. Meu corpo também vai à parede. E dói.

Espetáculo, será ainda? Maybe. Quem sabe nas expectativas trágicas da catarse.

Experimento? O que nos resta, toque. Only inside of me, inside of you. t-á-t-i-l…

De uma coisa não há dúvidas. A dança contemporânea tem se despedido dos palcos, mesmo que não pretenda abandoná-los. Parques, galpões, praças, saguões, praias… o paradigma cênico se redistribui por qualquer lugar onde a vida pulsa (ou não). E o regime de representação se vê ameaçado. Artes performativas, acontecimentos e imagens. Provoco, com Thereza Rocha, algumas dissonâncias a mais para pensar como outros tecidos dramatúrgicos compõem dança não necessariamente para criar uma “cena”. Segundo a pesquisadora da Universidade Federal do Ceará, isso se dá numa passagem das hierarquias do óptico para experiências hápticas [da sensibilidade do tato], que desprivilegiam a medida histórica de um olhar separado de espectador/observador para um o-l-h-a-r   t-á-t-i-l. E assim pensar como “as obras que mais nos perturbam e que mais perturbam a cultura […] são aquelas que estão sempre se perguntando acerca dessa relação entre intérprete e espectadores mediada pelo olhar, mas como alguma coisa que se dá entre”[9], devido às separações e economias históricas entre quem e quem dança na cena.

Não obstante, ambas as experiências investigadas na Mostra Panorama Br de 2017 se relacionam com essa fissura. “Se na vida não há mesmo como observarmos, senão mergulhados, imersos e confusos (confundidos)”[10], talvez não possamos falar em cena apenas de observações, mas de tudo que está implicado em nossos corpos naquele instante. E isso é acontecimento conjunto com o público. De carne e concreto propõe esses experimentos na ideia de instalação, enquanto Ó amálgama à catarse uma investidura tátil, de múltiplos toques. A exaustão de corpos é o ponto convergente entre estas cenas hápticas. Formam-se paisagens e/ou atmosferas, configuradas por sobreposições, devaneios e células coreográficas. E se ainda há alguma ideia de controle, perde-se em detrimento da cena e suas hierarquias (in)visíveis. Passamos de espectadores [sic] a compositores:

 

Nada restará ao público, a não ser a desconcertante assunção de seu próprio desaparecimento como sujeito-espectador e correlativo reaparecimento como motivo da composição – suas expectativas, seu lugar, seu papel no regime da representação (ROCHA, 2016: pág. 43)[11]

 

Com este desconcerto sou, então, capaz de compartilhar a presença cênica noutras configurações espaço-temporais em conflito com a representação. Entrando num circuito outro, mas sem reduzir isso a uma ficção que se opõe à “realidade cotidiana”. É corpo, experiência: corpo-pensamento-presença. Não seria tudo isso v e r dade… ? Sigo confusa.

Lá, lá, lá, lá, lá! Assim damos o xeque mate no estado obsoleto da crítica. Sinto. Sinto muito, sinto tanto que preciso falar. E danço escrevendo, pois m-e-x-e c-o-m-i-g-o qualquerumqueapareçanaminhafrente e me note como CORPO eM mOvImEnTo. Nesse xeque, é apenas o rei logos que vai “à lona”. Nos canta [entre aspas] outra diva pop, a maranhense Pabllo Vittar. Mas deixo essa música para um próximo encontro. Madonna tem de tocar outra vez. E ela adora desestabilizar o logocentrismo.

[com o coração]

 

This complicated life
I try to do my best
I always tell myself
It’s all just a test
For me it’s an escape
‘Cause dancing makes you feel beautiful 
Madonna, Heartbeat – Hard Candy (2008) [12]

 

 

Tiago Amate é jornalista, cineasta e artista-pesquisador no Programa de Pós-graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia. Atualmente pesquisa as relações entre videodança, autorreferência e ciberespaço da web. Trabalha no projeto Aloka das Américas, para o qual desenvolve interseções entre os processos de subjetivação e as experiências estéticas da videoarte contemporânea, com ênfase na linguagem da videodança. Atualmente, é artista residente da Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Desde 2012 escreve poesias para a página <<dospedacosnajanela.blogspot.com.br>>. Participou da imersão do Laboratório de Crítica no Festival Panorama no ano de 2015 e 2017. Participou do livro Performar Debates: LabCrítica no Festival Panorama e outras dobras (2017).

 

[1] Música disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=rRAV6eujO5I >. Acesso em: 28/11/2017

[2] Livre tradução do autor para o seguinte trecho: “On and on, the beat goes”.

[3] Antes de ler este texto, leia sua primeira parte: Da exaustão, paisagens e acontecimentos (first)

[4] TEIXEIRA, Ubiratan. Dicionário de Teatro. São Luís: Instituto Geia, 2009. Comentários meus.

[5] Trabalho e biografia do artista disponível em: < http://www.cristianduarte.net/ >. Acesso em: 22/11/2017

[6] Ficha técnica disponível em: < http://panoramafestival.com/2017/o/ >. Acesso em: 22/11/2017

[7] Informações disponíveis em: < http://cinco.lote.site/no-lote/ >. Acesso em: 22/11/2017

[8] Texto retirado do sítio: <http://www.cristianduarte.net/available-works/lote/>. Acesso em: 29/11/2017

[9] ROCHA, Thereza. O que é dança contemporânea? Uma aprendizagem e um livro de prazeres. Salvador, Conexões Criativas, 2016. – pág. 57

[10] Idem, pág. 57

[11] Idem pág. 43

[12] Música disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Zub_06BQqXU >. Acesso em: 29/11/2017.

 

© Texto produzido durante a Imersão LabCrítica no Festival Panorama 25 + 1. <<Saiba mais!>>