Eu quero ver quando Zumbi chegar eu quero ver o que vai acontecer

Recentemente, li um texto em que a escritora Conceição Evaristo analisava um conto de Alberto Mussa chamado A cabeça de Zumbi (2009). Nele, ela chamava atenção para como, no conto, o personagem histórico Zumbi, ao diluir a “sua própria individualidade, disseminando-se como um ente coletivo”, contaminava outras pessoas. Isso ficou ecoando na minha cabeça por me levar a pensar o quanto a identidade está dialogando com a coletividade, e o quanto, nesse conto, reforçado pelas pontuações de Conceição, questiona-se a ideia de individualidade a partir de um pensamento sobre coletividade. Penso que os personagens históricos míticos são como forças que, ao longo de todas as épocas, encarnam em corpos. E mais ou menos por aí também me veio, em memória cantarolada, o verso de Jorge Ben Jor que intitula este texto, cantado em seu álbum África Brasil canta Zumbi. Tudo isso porque, recentemente, fui assistir a um espetáculo de dança chamado Tempo e espaço: os solos da marrabenta, de Panaibra Gabriel Canda. Nele, dois corpos negros, de um músico e de um dançarino de Moçambique, se faziam presentes e traziam um debate muito interessante sobre a identidade no contexto da colonização de seu país. Engraçado que a palavra solo, que nomeia o trabalho, parece brincar com seus vários sentidos, uma vez que ela pode ser o chão, a terra ou a figura clássica, na dança e na música, do solista.

Enquanto via a performance de Panaibra Gabriel Canda, o dançarino, e de Jorge Domingos, o músico, tive a impressão de que os corpos ali naquele palco pareciam criar uma imagem de caleidoscópio. Em cena, vários microfones posicionados recortavam o espaço em planos diferentes. O corpo do dançarino atravessou todos eles: frente, fundo, plano alto, plano baixo, plano médio, diagonal. De certa forma, o trabalho também brincava com alguns lugares: do corpo que dança e do corpo que toca, pois Canda trabalha muito com as sonoridades a partir do seu movimento de corpo fazendo música também. Inegável que o corpo em cena de Jorge, com seus deslocamentos e movimentos, também fazia dança. Talvez apareça novamente aí a ideia inter-relacionada que pensávamos acima sobre indivíduo e coletivo, para se pensar essa relação entre música e dança.

… Quando Zumbi chegar

Eu quero ver o que vai acontecer…

O que seria a criação de um corpo assimilado? Camadas impostas, resultantes de processos de escolhas e não escolhas? Na dança de Solos da marrabenta, essas camadas são criadas através de um jogo rítmico de Panaibra, com movimentos repetitivos de códigos gestuais para cada identidade citada como parte da sua identidade. Para quem vê, dependendo de quem vê, elas criam confusão, se repetem e se misturam. O corpo de costas fala sobre sua história. Uma história de violências e invasões que, de alguma forma, é muito próxima da história do Brasil. O corpo fala em português, mas diferente do português do Brasil. O corpo do músico fala através da comunicação com a guitarra, com o espaço, com as repetições e fraseados de Canda. Existe um jogo constante de composição espacial entre ambos, assim como um jogo de comunicação entre os ritmos produzidos pelos seus corpos. Um jogo de comunicação com a colonização de lá e a de cá. Um solo feito a dois. Ou um solo feito por muitos? É inegável que aquele corpo que eu via não podia ser romantizado, nem poderia eu, no lugar onde falo, compreender de que tipo de construção eles falam. Pois a sua dança fala sobre um corpo negro (ou seriam dois? Ou seriam muitos?) colonizado no solo de Moçambique.

… Quando Zumbi chegar

vai acontecer…

É interessante sublinhar que a marrabenta, dança-música “típica” de Moçambique, foi considerada muitas vezes subversiva pelo governo português por críticas ao sistema colonial, assim como a capoeira, o samba, o candomblé, os bailes funk, entre outras artes negras que já foram também censuradas e ainda hoje são proibidas pelos sistemas de governo do Brasil. Somente em 1930, por exemplo, a capoeira deixa de ser proibida, e isso por conta de várias transformações e modificações que ela teve que sofrer diante da predominância da imposição cultural branca com seus sistemas de policiamento e repressão. A dança que parte da cultura de um povo é uma arma.

É preciso, assim como provoca a dança de Panaibra, acabar com o corpo branco. É preciso acabar com o corpo totalizante. É preciso acabar com o corpo dominante. É preciso acabar com o corpo acadêmico. É preciso acabar com o corpo sinhô/sinhá. É preciso acabar com o corpo elitista. É preciso acabar com o corpo militar. É preciso acabar com o corpo crítica.

Quando Zumbi acontecer

Mas não por muito tempo. Porque Zumbi, mortal eterno, atingindo o ápice do seu ideal, tinha diluído a própria individualidade, disseminando-se como um ente coletivo. Nenhum dos filhos de Deus ousou semelhante grandeza. Assim, vez por outra, Pernambuco continuava a ver o rosto de Zumbi. Até em mulheres; até em crianças; até em brancos. Por isso a angústia dos que vêm às cercanias de Palmares ou simplesmente contemplam a serra da Barriga: porque se esconde naquelas matas uma possível negação da singularidade dos seres e da própria ontologia humana; porque, vagando pelas brenhas, certamente ainda há algum Zumbi para morrer.

 


NOTAS
  1. CONCEIÇÃO, Evaristo. Apresentação. In: RUFFATO, Luiz (Org). Questão de pele. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009. p. 29.
  2. MUSSA, Alberto. A cabeça de Zumbi. In: RUFFATO, Luiz (org). Questão de pele. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009. p. 185.