Em Entre ver, tudo o que vemos de Denise Stutz é uma aparição

Na peça mais recente de Denise Stutz, Entre ver (2015), assistimos à dança de seus lirismos, de sua memória, que é, ao mesmo tempo, única e coletiva. Ao deslocar-se no tempo e no espaço na narração de uma Denise que ela já não é, assistimos a seu corpo no palco também sempre deixando de ser, no movimento que se desfaz – ora bem livre na corrente da memória narrada, ora pontuado por movimentos da técnica clássica – memória de um corpo passado. Aqui podemos pensar também na possibilidade de Denise se referir à técnica clássica como um recurso coletivizador da memória. Isto é, podemos pensar que Denise se vale da identificação tradicional – que ainda perdura, infelizmente – entre dança e balé clássico para, de certa forma, tocar em uma experiência comum do espectador. Esta é uma estratégia importante para a construção de sua peça, cujo tema central é justamente o lembrar, o narrar e o dançar a lembrança.

A cenografia do espetáculo é simples. O palco está desnudo e, assim, podemos ver sua estrutura maquinal de produzir sonhos e realidades. A contraluz, os refletores, as coxias, a estrutura metálica… No caso de Entre ver, a distinção entre sonho e realidade pode ser reconfigurada como um par em união, “sonho-realidade”, já que a matéria de que a cena é feita se dá, em grande parte, com a contribuição do devaneio do público.

É discutível, mas, apesar de toda a dança, de toda a movimentação, houve quem achasse que, quando Denise atravessa o palco em uma diagonal, de costas, sem nem mirar o público, no movimento mais cotidiano do caminhar, a concretude de sua presença se faz mais intensa. De fato, é uma cena tensa, em que a narração lírica para e o movimento está só: anda sozinho, sem ter a voz de Denise como acompanhante. Denise caminha e a musica It’s a long way, de Caetano Veloso, toca imediatamente depois dessa travessia, o que configura uma cena de repouso na familiaridade da voz do compositor – mais um recurso de chamado à memória partilhada socialmente.

Quanto de nossas memórias são ficção? O quanto delas nós moldamos, tal qual argila, a nosso bel-prazer? Essa problematização acerca do caráter ficcional da memória (e “ficcional” não deve nunca ser confundido com “falso”) está na ordem do dia nos mais variados campos do pensamento e do fazer humano. Na literatura, no cinema e na fotografia, especialmente. E em relação à dança? Como podemos ficcionalizá-la? Será que essa arte, efêmera mas material, é passível de ficções para além da ficção narrativa, como nos balés de repertório?

Acredito que Denise Stutz, em Entre ver, faz essa pergunta e sugere caminhos para pensarmos uma resposta. Denise fala de uma ficção estrutural, ou seja, que não está somente no conteúdo do espetáculo, mas que constitui o concreto mesmo que o ergue – e nos solapa. O espectador disposto a imaginar, e essa faculdade é mesmo fundamental para essa dança, saberá perceber a questão.