É no olho e nas dobras do corpo onde se resiste

Foto: CLAP /

 

Daimón, do coreógrafo colombiano Luis Garay, radicado na Argentina, conta com o protagonismo da boxeadora argentina Karen Carabajal, que entra em cena em seu ringue particular. Embora suas vestimentas não sejam roupas de treino, seu olhar, sua postura, sua disponibilidade física vaticinam uma luta eminente. Mas, ao contrário do que se espera de uma situação de guerra, o seu adversário não comparece ao confronto. Pelo menos, não vemos sua presença.

Deixem-me contar, antes, uma história muito antiga, que permeia a tradição filosófica até os dias de hoje. Daemon, que justifica o título do espetáculo, era uma palavra grega que significava “espírito”, na verdade, um espírito que acompanha. O daimon, como se diz em português, depois das influências e desvios linguísticos, desembocou no que entendemos hoje por “anjo” ou “demônio”. Em uma compreensão teleológica, os gregos antigos utilizavam o termo “daemon” para dizer o que era bom e favorável ou mau e desfavorável. Também poderia explicar sentimentos complexos como felicidade e tristeza. Eles faziam isto adicionando-lhe os prefixos “eu” ou “kako”. Assim, “eudaimon” era uma presença de bons ventos, a “eudaimonia” era a própria felicidade, ao passo que a “kakodaimonia” era a tristeza. O próprio Sócrates creditava sua aparente sabedoria aos conselhos de um daimon que o acompanhava desde a juventude, porque ele mesmo sabia que nada sabia.

A luta que acontece no palco/ringue de Karen Carabajal não é uma luta qualquer, que pressupõe normalmente um vencedor e um perdedor. Ao contrário, uma presença contínua persiste em manter nossa protagonista em combate. É o seu daimon, como o de Sócrates, que a mantém em movimento incessante, incansável. Ora ele se sobrepuja a ela, ora ela toma a força dos movimentos, pesados e precisos, necessários para submeter seu companheiro de ringue. Força, suor, tensão.

O corpo feminino aparece de forma sublime. E o movimento languido e flexível, estereotipicamente associado com a figura feminina, desaparece, nem mesmo nos visita o pensamento. A postura se encurva, o rosto se esconde atrás dos punhos que, ligeiros, tentam afastar o inimigo pela dolorosa aproximação. A luta e dança se contrastam e se identificam repetidas vezes. Ali, o corpo da mulher não é um objeto, é o sujeito de enfrentamento. Que, por tanto enfrentar, se deforma e luta como pode, em vista do cansaço de seu corpo. Aquele corpo que nem pode ver seu antagonista, nem mesmo sabe seu nome, mas persiste na resistência de se sentir viva e potente ao final do primeiro assalto.

Os olhos, que não veem seu oponente, não se permitem desviar um segundo do foco de seu esforço. Eles são a âncora que traz o corpo cansado de volta para a batalha. Não digo só os olhos de Karen, mas os nossos também. O espetáculo é inteiramente à meia-luz. Branca. Estroboscópica. A luz brilhante ilumina apenas um lado do corpo de Karen, de cada vez. Os movimentos incessantes, as luzes incessantes, os sons incessantes de seus gemidos de força, garantem que nenhum de nós sairá menos cansado do que ela. Queremos nos distrair daquela cena de exaustão, mas nossos olhos insistem em resistir junto com o espetáculo.

De uma outra maneira, Dança Macabra, da intérprete e criadora Laura Samy, fala sobre questões potencialmente parecidas. Também, nesse espetáculo, temos uma protagonista feminina que se move em relação a um outro, às vezes pelo medo, às vezes pelo êxtase. O som das dobras do corpo feminino colidindo – aquele som dos seios batendo no próprio corpo quando se pula, o ruído ressoante da carne das nádegas se chocando durante o movimento – não são mais motivo de vergonha ou embaraço. O movimento que delineia fluxos prazerosos não é mais interrompido. Longe disso, é digno de estar no palco.

As palavras – bem irônicas – que Laura profere, durante o espetáculo, reforça a dignidade inerente ao corpo. A qualquer corpo e carne. “É proibido ser velho”, ela diz. E, no entanto, ela se desnuda na frente do púbico. Seu corpo é de uma mulher madura. Uma mulher madura e real. E esse é o único corpo que tem para ver[1]. E o papa, a mulher, o barbeiro, o cachorro, se não gostarem, que vão todos passear[2].

Presenciando a cena, é impossível não lembrarmos das antigas bruxas que floreiam e assombram as lendas de, arrisco, todas as culturas. Uma mulher vestida de preto, sem medo de seu corpo, sem vergonha de seus sons, dizendo verdades que não querem ser ouvidas, deveria acabar na fogueira.

Laura não nega seu caráter hecatiano e, por isso, fala na língua dos descendentes de seus inquisidores, deixando um cheiro de latim pelo ar: “Io so I nomi dei responsabili di quelli che vienne chiamato golpe”, “Io so ma non ho le prove”. Ela sabe quem são os responsáveis. Ela sabe, mas não tem provas. Ela foge, mas não tem medo. Ela resiste para lutar mais uma vez. Ela dança para não morrer. Ela morre de resistir.

 

Verena Than é doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; é bailarina contemporânea pela Escola Angel Vianna. Busca aprofundar seus estudos nas ideias dos filósofos contemporâneos Maurice Merleau-Ponty e Martin Heidegger, bem como nos pensamentos sobre Corpo e Arte. Participou do livro Performar Debates: LabCrítica no Festival Panorama e outras dobras (2017).

 

[1] Faço referência a uma das falas de Laura: “meus amores, olha para minha cara, esse é o único rosto que tem para ver”.

[2] Outra fala: “O papa, a mulher, o barbeiro, o cachorro, a rainha, a criança, o burguês, o rato, o louco, o vizinho… Tá todo mundo aí… Vai todo mundo passear”.

 

© Texto produzido durante a Imersão LabCrítica no Festival Panorama 25 + 1. <<Saiba mais!>>