Do alto de uma árvore…

Foto: CLAP  /

 

No dia 16 de dezembro de 2013 a liderança indígena José Guajajara subiu em uma árvore que se encontrava nas mediações do antigo Museu do índio, prédio atualmente conhecido como Aldeia Maracanã. Sem grandes estardalhaços, seu protesto era simples: queria garantir o direito dos indígenas ao prédio localizado ao lado do Estádio de Futebol Jornalista Mário Filho (o Maracanã), pois, lá, foi o espaço urbano que encontraram para realizar suas práticas e vivências culturais. No espaço da Aldeia Maracanã, indígenas de diferentes etnias conviviam em harmonia, circulando em espaços coletivos como a cozinha comunitária e a horta implantada no espaço, além de receber seus “parentes” (maneira como tratam qualquer indígena) em visitas pontuais à cidade. Mas, graças a uma decisão do Estado do Rio de Janeiro, aquele prédio não deveria mais existir, deveria ser demolido e ceder espaço a construção de um grande estacionamento, servindo de apoio aos visitantes que frequentariam mais assiduamente o Estádio Maracanã durante a época da Copa do Mundo (2014) e Olimpíadas (2016). Assim, o Estado decidiu por todos, sem consultar quem dava vida e morava naquele espaço. Decidiu em nome da ordem e do bem-estar da população carioca.

Porém, os indígenas estavam mais armados nesse novo embate. Graças à ajuda de movimentos sociais e às manifestações de 2013, conseguiram que sua luta se tornasse pública através da mídia. E o protesto pacífico de Guajajara ganhou os grandes jornais. Por 26 horas ele ficou em cima da árvore, por 26 horas não permitiram que ele recebesse alimentação (muitos apoiadores tentavam jogar alimentos para Zé dentro de sacolas que, imediatamente, eram interpeladas pelos bombeiros), por 26 horas não permitiram que ele se comunicasse com sua esposa ou filhas, por 26 horas o despiram de todos seus direitos enquanto sujeito.

Zé permaneceu no alto da árvore até o limite de suas forças. Do alto daquela árvore, dos 4 metros do chão que se encontrava, Zé representava uma luta que não tem fim: a luta pelos direitos que todo cidadão brasileiro deveria ter, com exceção dos indivíduos alocados em “sub classes” como acontece frequentemente com os indígenas.

*

 

Do alto de uma árvore começa a performance, de Fernanda Silva e Sônia Sobral, Somos involuntários da pátria porque outra é a nossa vontade. Não posso afirmar que foi uma escolha proposital, mas a imagem de Fernanda em cima de uma árvore me parece espelhada no protesto descrito acima. Sim, não estamos em uma situação real de conflito mas a sua performance é um manifesto e, assim nos faz navegar por diferentes momentos – atuais e seculares – da luta do movimento indígena e das minorias.

Retomando o início da performance, entendo a escolha da árvore como um marco, uma releitura do protesto na Aldeia Maracanã no ano de 2013. Um protesto para garantir que a memória e o direito a espaço de uma grande parte da população brasileira fossem mantidos, o direito a moradia dos indígenas no perímetro urbano e o direito de suas práticas culturais. A analogia com o espaço escolhido pela performance se revela: o Circo Voador também foi palco de desmonte, foi demolido pela prefeitura do Rio de Janeiro (1996) para depois retornar na configuração que conhecemos atualmente. O direito a expressão artística foi banido daquele reduto na Lapa. A forma como o Estado ou a prefeitura tratam expressões que não concordam ou que não estão em completa confluência com suas ideias se repete. Mais fácil demolir, fechar ou vender para o poder privado do que abraçar e entender o que é estranho, diferente ou apenas expressa opiniões divergentes.

E Fernanda representa tudo isso, no alto da árvore, recitando a plenos pulmões um texto manifesto, ela se apresenta simbolicamente enquanto um corpo repleto de significados que poderão ser lidos de diferentes maneiras pelos espectadores ao seu redor. Podemos questionar o porquê da escolha dessa performer para o ato em questão, já que o texto que ela recita – de Eduardo Viveiros de Castro[1] – fala de uma situação bem particular, da questão indígena e a luta contra a PEC 215[2]. Mas o próprio texto recitado por ela esclarece que, indígenas somos todos nós, pois, de acordo com Viveiros, o termo significa “gerado dentro da terra que lhe é própria, originário da terra em que vive”. Ora, todos os brasileiros foram gerados dentro da terra em que vivem, somos todos originários dessa “ilha” de língua portuguesa dentro da América Latina.

Foto: Clap

Logo, fosse Fernanda, ou um indivíduo que se identificasse dentro de uma das etnias indígenas, você ou eu lendo o texto, a defesa seria válida, afinal todos nós compartilhamos dessa identidade enquanto indígenas do Brasil. Mas pensar isso é um equívoco, ao mesmo tempo que o texto recitado por Fernanda nos iguala, também mostra como somos vistos como diferentes, como grupos minoritários são tratados de forma excludentes em nosso país. E assim nascem os “índios” que, diferente do que Viveiros nos explica serem indígenas, são os indivíduos marcados como os não brancos, os diferentes, os que não pertencem. O termo branco ganha ressonância e, nesse caso, não se aplica mais apenas a cor de pele, amplifica e traduz os indivíduos heteronormativos de uma classe média elitista e conservadora que querem manter os “índios”, os diferentes, despidos de seus direitos.

No texto apresentado na performance, “índios são os membros de povos e comunidades que têm consciência — seja porque nunca a perderam, seja porque a recobraram — de sua relação histórica com os indígenas que viviam nesta terra antes da chegada dos europeus”, perdem sua singularidade, sua etnia, se tornam índios genéricos do Brasil, sua ancestralidade pouco importa, são apenas índios, mais um grupo, mais um minoria. E, ao se tornarem genéricos, se tornam anônimos, novamente alguns numa multidão perdida, numa mistura que forma o continente Brasil.

E Fernanda? Fernanda é parte de uma minoria anônima, é uma transexual nordestina. Apesar de não ser indígena, ela pertence a um grupo marginalizado, conforme texto distribuído durante a apresentação ‘mata um leão por dia para não morrer” e por isso se apresenta como uma escolha astuta para performar Viveiros. Segundo o mesmo texto, a primeira vez que Fernanda leu o manifesto de Viveiros, foi atrás de um púlpito, apenas recitando o texto como se estivesse em uma palestra ou numa sessão do Congresso. A ideia de colocá-la em tal dispositivo foi para emular Ailton Krenak na Assembleia Nacional em 1987, de acordo com depoimento de Sônia Sobral encontrado no mesmo texto supracitado distribuído no dia da performance.

Em 1987, Ailton Krenak realizou ato político através de um discurso em que elucidava como os indígenas eram tratados pela Constituição Brasileira e performou sua revolta não apenas com suas palavras, mas também pintando seu rosto com jenipapo, representando o luto dos indígenas em relação aos seus direitos e do entendimento da necessidade de tutela do Estado a esse grupo.

Krenak estava com um terno branco e, a cada frase, espalhava o jenipapo em seu rosto com a palma da mão aberta, sem deixar pedaço algum de pele descoberta. Ao final de sua fala apenas seus olhos se mantinham livres do pretume. A imagem de Krenak repercutiu por todo o país e acabou influenciando na aprovação dos artigos 231 e 232 da Constituição de 1988.

Fernanda não poderia repetir esse ato, acabaria por se tornar caricatural e, tirá-la do púlpito, permitindo que a mesma circulasse e criasse relações com o texto que lia dá energia a performance. Por mais que referências a causa indígena estejam sempre presentes – sejam referências aos atos de Zé Guajarara ou Ailton Krenak –, Fernanda ressignifica o discurso de Viveiros: é uma mulher trans, nordestina declamando o texto e não apenas de forma didática ou informativa, ela interpreta o texto, enfatiza certas frases, coloca tonalidade nas palavras, por vezes repete termos ou até acrescenta pequenos trechos à obra já encerrada. Mesmo com o discurso impresso em suas mãos, ela ainda tem liberdade de criar em cima do mesmo, se apropriando e tornando o texto seu.

Fernanda não necessariamente quer chamar atenção à questão indígena, ela performa o texto em favor de sua causa (não menos nobre). O próprio texto permite isso, entre idas e vindas sobre PEC e direito a terra indígena, Viveiros faz um manifesto muito maior, ele fala dos excluídos, das minorias, os involuntários da pátria e esses são todas as minorias existentes. Fernanda se encaixa nessa categoria aqui cunhada, é uma involuntária. Não escolheu ter que matar um leão por dia, não escolher o corpo no qual nasceu, não escolheu ser julgada por apenas querer ser ela, foi involuntariamente jogada, sem direito a reclamar, nessa realidade. É uma involuntária pois não escolheu as adversidades que se apresentam para ela, nem escolheu viver em uma pátria que não a reconhece, não a representa. Sua história se funde com a dos indígenas citados no texto pois faz parte de grupos que os grandes poderes querem manter anônimos, que devem permanecer sem direito à voz. Entretanto sai da condição de involuntária quando decide realizar a performance em questão. A partir do momento que ela decide, mesmo que através da indicação de uma segunda parte, performar o texto, se tornar menos anônima, se tornar possuidora de seu destino, voz ativa e dominante. Toma para si o poder de decidir o que quer mostrar e assim o faz, revelando pedaços de sua luta ao interpretar a luta de outras minorias.

A apresentação no Circo Voador em que Fernanda se movimentava sem parar pelo espaço, fazendo uso da arquitetura e do público para se tornar visível não foi de apenas um manifesto ou uma performance. O que vimos foi um ato, um ato contra a invisibilidade das minorias, a vontade de dar voz a quem não possui. Um ato que poderia reverberar ainda mais se fosse realizado em espaço de confronto e não em um espaço de conforto. Um ato, como o que Fernanda realizou, necessita ganhar as ruas e, assim como fizeram Viveiros, Guajajara e Krenak, se transfigurar em ato político, estar inserido em uma arena de luta política, fora do conforto de uma plateia que irá abraçar as ideias lançadas. Sejamos voluntários de uma nova pátria, levando o discurso e o ato proferido para os verdadeiros espaços de disputa.

 

Julia Baker é Mestre em História, Política e Bens Culturais. Participou das edições de 2013, 2014, 2015 e 2017 do Laboratório de Crítica do Festival Panorama. Atua na equipe de curadoria do Museu de Arte do Rio (MAR) e pesquisa performance e danças sociais em sua atuação acadêmica. Participou do livro Performar Debates: LabCrítica no Festival Panorama e outras dobras (2017).

 

 

[1] O texto utilizado durante a performance manifesto, Involuntários da Pátria, é de autoria de Viveiros e foi produzido durante uma aula pública no ato Abril Indígena na Cinelândia (Rio de Janeiro) em 20 de abril de 2016.

[2] A PEC 215 é uma proposta de emenda constitucional brasileira em que o Congresso Nacional teria mais direitos sobre a demarcação de terras indígenas e quilombolas que a própria FUNAI. O Congresso poderia mudar a situação de terras previamente demarcadas enquanto reservas indígenas e questionar a indicação de demarcação feita por especialistas além de não compensar os indígenas expulsos de suas terras por entender que terras indígenas pertencem à União.

 

© Texto produzido durante a Imersão LabCrítica no Festival Panorama 25 + 1. <<Saiba mais!>>