Deslocamentos improváveis no MAR

Foto:  Bruno Reis /

 

Em seu livro “Fenomenologia da percepção”, Maurice Merleau-Ponty afirma que o corpo é o “pivô do mundo”. O corpo traduz experiências, memórias, ele cria linguagem e consegue se comunicar com os demais corpos que encontra, seja através de gestos ou apenas a partir da sua permanência em determinado espaço/contexto. O corpo comunica, o corpo traduz a linguagem e apresenta uma história não verbal. A performance Deslocáveis, de Rodrigo Maia e Tony Everton[1], utiliza da potencialidade do corpo para criar um jogo de comunicação onde a fala propriamente dita não tem espaço.

A relação parece simples, dois corpos unidos, inicialmente pelo gesto de um aperto de mão. Unir, sem a possibilidade de separar, dois corpos que parecem indissociáveis mas que criam tensões pois, apesar da união da pele, ainda são independentes, podem traçar caminhos diferentes e criar deslocamentos e percursos que irão impor um ao outro. Existe uma cumplicidade no movimento, mas, a criação dos caminhos não se faz em plena união.

Duas mãos em conjunto possuem amplo significado, podem representar, por exemplo, um cumprimento formal de dois desconhecidos ou a união de um casal. Dois corpos conectados não estão necessariamente ligados, não compartilham dos mesmos ideais, dos mesmo desejos de gesto, de representação. Conforme escrito no texto que apresenta o trabalho, a performance quer lidar com o deslocamento, sejam deslocamentos sonhados ou impostos. Podemos realizar um contraponto com uma situação muito corriqueira da atualidade: os corpos de refugiados e de imigrantes forçados.

Esses são obrigados a se mover, a realizar movimentos indesejáveis e compartilhar espaços com outros corpos, a se adaptar a novas realidades. Os trajetos realizados por esses indivíduos são semelhantes ao gestual que vivenciamos na performance. Nem sempre os artistas parecem saber qual caminho irão seguir, por onde irão se deslocar e qual o resultado final daquele trajeto não definido. Se jogam diante do desconhecido assim como um imigrante, fogem de um espaço e logo, não encontrando conforto no local em que pararam, se movimentam novamente. E, assim como os imigrantes, compartilham a experiência, porém em um grau de cumplicidade que não consigo precisar ser o mesmo que um refugiado compartilharia com um de seus pares. Pois, mesmo lidando com o acaso e a incerteza de onde o seu parceiro de cena irá levá-lo, me parece existir confiança e cumplicidade dentro do movimento, dentro das incertezas criadas naquela cena. E, ao poucos, aquele gestual de deslocar-se sem se tocar plenamente vai ganhando ares eróticos com o aproximar dos dois corpos.

A ligação agora se faz pelo olhar, no riso escancarado, nas bocas que quase se tocam, em uma situação de chegada e hipnose. Os dois corpos agora se comunicam apenas entre si, a audiência se torna voyeur de uma troca íntima, experiência sensorial e sensual daqueles dois sujeitos. Talvez eles tenham chegado em seu destino final? Será que estamos vendo dois corpos cansados da luta para achar um local de pertencimento e que, após tanto esforço, decidem não buscar um local físico e sim um local espiritual, um local compartilhado apenas entre eles? Não existem respostas, mas apenas questionamentos que nós, enquanto audiência, podemos levantar.

Porém o desejo de se movimentar persiste e é expresso através da cenografia da peça, barquinhos de papel espalhados pelos espaços percorridos. São esses barcos que levavam os escravos em suas travessias entre o continente Africano e Europeu e são esses barcos que continuam fazendo a travessia de corpos escravizados pela guerra e maus tratos nos dias de hoje para terras prometidas. Os barcos não são de papel, mas bem poderiam ser, pois contemplam a fragilidade dos corpos que carregam através de sua má construção. Os espectadores são levados a compartilhar espaço com alguns escolhidos dentro da arquitetura da sala que comporta a performance. Somos separados por um destino irracional e colocados para convivermos juntos, juntos aos barquinhos de papel e junto a corpos que desconhecemos e sem direito a escolher o nosso percurso. Mas, afinal, que corpo consegue escolher o seu próprio percurso?

Uma informação importante que influencia os movimentos e trajetos da performance é que a mesma se deu em um espaço não cênico. Tony e Rodrigo estavam dentro de uma sala de exposições. Com isso tiveram que lidar com as dificuldades que a expografia poderia apresentar – paredes no meio da sala, bancos espalhados – e criar um movimento que dialogasse com a arquitetura sem parecer que estavam evitando-a. Os deslocamentos, os movimentos fluíam pela exposição e os espectadores também tinham que adaptar seu olhar, eventualmente deslocando-se pela exposição para conseguir assistir a todos os movimentos produzidos pela dupla de artistas. Com isso a possibilidade de lidar com o desconhecido do espaço se amplia. E os artistas aproveitam esse desconhecido, esse novo espaço a ser adaptado e o exploram na performance. O fato da sala expositiva apresentar espaços velados e outros mais revelados ajuda a construção da relação entre artista e audiência. No momento dos barquinhos, por exemplo, os artistas interagem com a arquitetura de duas pequenas salas dentro da galeria e levam a audiência a perceber as limitações desse espaço também. Enquanto somos levados para dentro da pequena sala, percebemos o espaço expositivo, passamos a olhar não apenas os lastros da performance, mas também os lastros de, naquele espaço, diferentes fotografias. Cada pequena sala nos apresenta um conjunto de obras fotográficas cuidadosamente escolhido para estar lá, naquele espaço. No caso, fotos retratando indígenas em uma sala e, na outra, fotos de Canudos (Bahia). Ambas podem se relacionar com o fluxo de movimento apresentado pelos artistas, podem se relacionar com os barquinhos espalhados na sala, podem se relacionar com o sentimento de êxodo e de deslocamento que a performance produz.

A relação entre exposição e performance funcionou harmonicamente, ambas linguagens artísticas pareciam se complementar naquela tarde de sábado.

 

Julia Baker é Mestre em História, Política e Bens Culturais. Participou das edições de 2013, 2014, 2015 e 2017 do Laboratório de Crítica do Festival Panorama. Atua na equipe de curadoria do Museu de Arte do Rio (MAR) e pesquisa performance e danças sociais em sua atuação acadêmica. Participou do livro Performar Debates: LabCrítica no Festival Panorama e outras dobras (2017).

 

 

[1] Performance apresentada durante o seminário Trans-In-Corporados: construindo redes para a internacionalização da pesquisa em dança, realizado nos dias 10 e 11 de novembro de 2017, organizado pelo LabCrítica no Museu de Arte do Rio (MAR). Durante os dois dias do seminário o Museu recebeu performances de diferentes artistas – nacionais e estrangeiros – que dialogavam com o espaço das exposições, a arquitetura do Museu e com a localidade do mesmo – Praça Mauá e regiões adjacentes.

 

© Texto produzido durante a Imersão LabCrítica no Festival Panorama 25 + 1. <<Saiba mais!>>