Dança baixa e o tesão da intimidade

O público é autorizado a entrar no teatro e os dançarinos já estão lá, nus, ocupando um linóleo quadrangular.

As cadeiras contornam o linóleo desenhando as bordas do espaço cênico. Me sento e me organizo para estar ali, ora olhando para os três dançarinos de pé a minha frente, ora para o movimento das pessoas da plateia, que vão entrando no teatro e buscando seus lugares.

 

.. o . r . g . a . n . i . z . a . r – s . e .. p . a . r . a .. e . s . t . a . r ..

 

Cada dançarino está voltado para uma direção. O que dá, para cada pessoa do público, três enquadramentos diferentes sobre o corpo. Eu vejo de muito perto uma pessoa de costas, que tem as bordas dos músculos bem definidas; vejo uma outra lateralmente: curva acentuada na lombar, seios e a musculatura mais diluída, como que mais misturada à pele; a terceira pessoa é a mais distante, e essa vejo de frente: pelos, peru, mamilos, todos os contornos frontais… Têm as cabeças também. E os traços dos rostos ali, num silêncio sonoro. É que embora, efetivamente, não haja nenhum som acontecendo, o movimento que eles realizam produz um silêncio que sugere um tipo de ronronar de gato: os três dançarinos têm os olhos suavemente fechados e, num toque lentíssimo, vasculham o próprio corpo, percorrendo-o com as mãos. O toque que eles realizam é de reconhecimento da pele, um tipo de toque tão sutil quanto potente, que não tem interesse em mapear o corpo objetivamente. Eles lambem o próprio corpo com as pontas dos dedos e, com esse movimento demorado, exercitam estar juntocom o tempo, despertando um sentido de intimidade.

 

.. c . o . m . o . t . e . m . p . o ..

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Depois de contornados os fluxos, os dançarinos iniciam um movimento de aproximação e afastamento das partes, que faz aparecer gestos de torção e dobraduras. Na medida em que os dançarinos se dobram e des-dobram, podemos acompanhar com todos os olhos o que acontece com os corpos: saltam vértebras, escápulas

 

. . . . . . toda a ossatura . . . . . .

 

… … … … … … … … … … … … … contornos de músculos … … … … … … … … … … …

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Os movimentos decorrem em forma espiralada e é possível acompanhar com clareza os percursos que as partes dos corpos dos dançarinos realizam. Nesse momento eles começam a vestir as roupas que se encontram no chão, aos pés de cada um, desde o início do trabalho. O movimento para isso é uma caminhada em volta de si mesmo: cada volta dura o tempo de vestir uma peça de roupa, ou: o tempo de vestir uma peça de roupa dura uma volta. Ainda é be e e em lenta a dança e a essa hora o som imaginativo do ronronar ganha materialidade: um canto murmurado e baixinho que vai aumentando gradativamente de volume.

 

A estrutura da cena alarga as distâncias entre os marcos do relógio e é a chance de nós, de bunda sentada na cadeira, nos afinarmos com a proposta de intimidade que estão nos soprando; é a chance para distensionarmos nossos olhos espectadores, deixar que eles se deitem na cavidade ocular

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Penso em como Hubert Godard palavreia a construção do gesto de ver na experiência artística de Lygia Clark

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Em uma entrevista com Suely Rolnik que recebeu o título de Olhar cego (2004), Godard discorre sobre dois modos distintos de olhar: um modo “objetivo” e um outro, “subjetivo”. Ao olhar dito “subjetivo” ele entrega a palavra “recepção”; seria um jeito de ver que está mais disposto a receber o que se vê, do que a impor-se sobre a coisa vista. Em Dança baixa, esta operação de olhar receptivamente é um movimento importante de ser realizado pelo público. Diluir o caráter emissor do olhar que acaba por forrar o que é visto de nomes, adjetivos, pontuações ordenadoras. Diluir para tornar possível o enlarguecimento da camada de intimidade que os dançarinos constroem entre eles e para tornar possível a dança que, ativando percepções íntimas, investiga uma modulação para o encontro.

Porque afora as pretensões sofisticadas de elaboração cênica, as cenas do trabalho se desdobram, coreográfica e dramaturgicamente, interessadas em manter vibrando o campo de intimidade que foi criado. A direção da obra se preocupa em olhar para os modos de encontrar: se em um momento as peles se encontram pelo toque de deslizamento, em outro se encontram por movimentos bruscos de aproximação e afastamento; ora o encontro é sobre voar, e os dançarinos giramgiramgiram até cair, para em seguida se encontrarem em um gesto de acolhimento – imagem do pousar; ora está em jogo um gesto de cuidado, noutro momento um gesto de reconhecimento; a dança alcança os olhos dos dançarinos construindo olhares que agarram, olhares que lambem, olhares que sopram, olhares que se dissolvem.

O percurso que realizamos junto ao Dança baixa é um convite-desafio a uma possibilidade de encontro que respira o tempo das coisas e põe em xeque as manobras ansiosas de pensamento e os modos espectantes de olhar. Viola o corpo-espectador sutilmente – “suavemente pra poder rasgar”, como nos diz Tom Zé. Violência de algodão, proposição erótica na medida em que põe em questão o caráter individualizado de cada pessoa do público ao instaurar um espaço-tempo que provoca a estarcom. Criação que se afina com o pensamento sanguíneo – porque vivo –, que Sofia Neuparth tece no artigo que escreveu para o livro Arte agora:

[…] se o movimento da configuração da forma é esquecido dando lugar ao congelamento de uma série de sinais, se o entendimento da fixação da representação da forma toma o lugar da escuta do movimento que a potencia, então ela despe-se de criação, perde vibração e passa a ocupar um espaço que suga a vida, que amachuca a mobilidade […] se a forma/obra se permite aparecer vibrante da criação que a configurou […] se trabalhar o “estar com” e não o “estar para” ou “estar porque” é possível o aparecimento de um documento [ou obra] que transporta e integra a vibração da criação.

A Cia. dos Pés nos provoca a descongelar nosso modo de assistir dança, nos faz refletir sobre a relação entre a arte e um certo sentido de arrebatamento hipersaborizado; põe em discussão o próprio sentido de arrebatamento ao experimentar um deslocamento sutil no modo de se aproximar da dança e, com isso, elabora uma proposta significativa: vamos estar juntos? Vamos ver o que acontece se você puder ver o suor escorrendo do sovaco do dançarino? Se você puder ver, pr’além dos dançarinos, os rostos das outras pessoas na plateia…, se você puder ver o movimento cuidadoso de um amigo que ao ver a bunda da moça descoberta vai lá e lhe ajeita a saia…, se você puder olhar – de olho para olho – o cansaço do menino ali, deitado no chão enquanto orienta a respiração para retomar sua partitura de movimento…, vamos ver o que se pode ver . . . ,

vamos ver o que acontece se você puder estarcom?

 


REFERÊNCIAS
BATAILLE, George. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
NEUPARTH, Sofia. Que corpo é este? Que dança é esta? In: NEUPARTH, Sofia; GREINER, Christine (Org.). Arte agora: pensamentos enraizados na experiência. São Paulo: Annablume, 2011.
GODARD, Hubert. Olhar cego. Entrevista com Hubert Godard, por Suely Rolnik. In: ROLNIK, Suely. (Org.). Lygia Clark, da obra ao acontecimento. Somos o molde. A você cabe o sopro. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2006a. p. 73-80.
TOM ZÉ. Tô. Estudando o samba. LP. Continental, 1976.