Da exaustão, paisagens e acontecimentos: uma instalação? (first)

Foto: CLAP   /

 

“I can’t stop thinking of you
the things we used to do
the secrets we once shared
I’ll always find them there
in my memories”
Madonna, Inside of me – Bedtime stories (1994) [1]

 

Sigo com a diva pop e refaço um início similar aos ruídos direcionados para o Festival Panorama em 2015. Neste jogo de xadrez, reitero a jogada da rainha sem, no entanto, repeti-la. A iterabilidade, no caso, serve especialmente à diferença; ao deslocamento de uma Madonna outrora distante [2] àquela que agora começa próxima demais para pensar solitariamente acerca dos acontecimentos cênicos.

A ideia de que estou tratando aqui é a própria confusão em que me meti quando “senti demais” ou estive “perdida” nas exaustivas imagens e seus respectivos desdobramentos em dois espetáculos [se ainda assim os podemos chamar] exibidos na Mostra Panorama Br de 2017. Expresso-me ironicamente entre aspas para anunciar devaneios e divagações outrora descartáveis [e agora, ainda] pelo sistema logocêntrico de nossa gramática europeia. Por isso recupero a musicalidade de Madonna em 1994, a fim de trazer Inside of me e propor uma metáfora capaz de reconfigurar os sentidos deste texto para uma crítica menos seca:

 

Eu sempre terei vocês dentro de mim [3]

 

Sentimento inelutável. Assim me despeço da objetividade descritivo-narrativa homologada à escrita a fim de pensar noutras estratégias, que impliquem corporeidades dançantes [4] num texto de apenas duas dimensões. O verso da diva poderia, então, nos dizer algo sobre alguns espetáculos [sic] de dança contemporânea? Tenho uma sugestão. Na mesma música, é possível ouvir: eu sempre vou encontra-los lá, em minhas memórias [5]. Se o corpo for entendido como memória, chegaremos aonde pretendo ir: às memórias [do/no/pelo] corpo. Vocês, aqueles que presenciei em cena, estão dentro de mim, do meu corpo-memória. Por isso quero retomá-lo(s), provocando dissonâncias e aproximações imbricadas às imagens cênicas das quais já não posso me apartar.

Se aqui a herança burguesa do espetáculo cênico se confunde com a participação imprevisível do espectador [sic], caberão outras estratégias que não mais reproduzem a cisão discurso x corpo ou escrita x dança na crítica em artes da cena. A pretensão é buscar nas experiências desalojadas do palco italiano outros encontros dramatúrgicos, que não repercutem, necessariamente, a figuração ativo-passiva, trazendo também à escrita experiências que deslocam as funções artista x público. Entretanto, isto não nos é inédito.

Alguns encenadores contemporâneos em dança há muito têm tentado se afastar de uma dramaturgia do conceito, em cujas estruturas fechadas há uma presunção de controle da espectação na obra, a fim de pensar processos em dramaturgia[6]. Uma reconfiguração que multiplica protocolos de criação ao longo da experiência estética com os materiais (humanos ou não). Neste caso, vou me ater especialmente às variações na autorização de corpos em cena, divididos historicamente entre quem assiste e quem encena, sem qualquer risco de troca de papéis ou, no mínimo, de quaisquer interferências coletivas. E se não vamos falar do lugar-comum de um espectador [sic], falaremos de que, logo num festival de artes da cena que prioriza espetáculos?

De corpos em movimento, inclusive o meu. De confusão. Inside of me

Recorro à memória-corpo a fim de pensar na infinitude de imagens quando estive em relação direta com os experimentos [prefiro assim, vindo da ideia de uma experiência, teste ou dúvida, a chamá-los de espetáculos, pois apesar da etimologia – dar-se a ver – o que se convencionou do espetacular… aghr!]. Gosto dessa palavra pois me remete às imprevisibilidades que não cabem apenas na ideia de alguém que apenas observa, mas que também está implicado na obra, faz parte dela. Nesse aspecto, não só as percepções, que se dão a níveis pessoais e múltiplos, interessam. As reações, os corpos em jogo, materializam a partir do movimento em cena implicações mútuas, entre públicos e artistas. De maneira mais direta e objetiva, o espectador [sic] modifica a cena: um experimento jamais será igual ao outro. E, mesmo que essa ideia possa ser usada como justificativa para tudo que se faz em as artes da cena [porque muda e desaparece, o corpo da cena], há uma diferença.

Inquietações reverberadas sobre os corpos sentados no conforto da relação palco-plateia não cabem na materialidade daquilo pode mover corpos em cena [e falo mais especificamente do público, não dos artistas a quem recaem as expectativas de movimento]. Imagine só se sou empurrado ou lambido por quem dança [o corpo autorizado em cena] e, por conseguinte, lambo e empurro. É muito diferente de ver alguém sendo empurrado ou lambido numa cena. O corpo não está sob a ameaça de um acontecimento. Pois o que acontece está sempre fora: uma outridade anunciada à distância, um acontecimento “espectatorial”, algo da ordem primordial do visível.

Na ideia de sentido pela visão, funda-se a hierarquia do ver para ser. Então, quando recorro ao conceito dos experimentos falo, sobretudo, das imagens dos corpos que, de tão próximos, estão dentro de mim, reconfigurando minha presença de forma direta no espaço, numa constante atualização provocada pelos acontecimentos em cena. São corpos que me fazem andar, parar, correr, hesitar, desviar. Agir! Corpos que me assustam, me estafam ou me surpreendem, culminando numa ação/reação impensada/furtiva do meu próprio corpo. Assim, ao me instigarem sensações, me mantêm em movimento, mesmo quando estou parado. E é porque a qualquer momento podem voltar, estão a instantes do meu toque e…opa!

Esses corpos, o meu corpo. Estão todos em cena. Inside of me, inside of you

A difícil tarefa de recuperar tais dinâmicas, que interessam ao dentro-fora de mim, mas ao dentro-fora que também tento provocar na leitura deste texto, trará mais algumas cartas na manga. Sugiro movimento. Para dialogar com cada um dos dois experimentos exibidos na Mostra Nacional do Festival Panorama e que apresentam essa mesma condição cênica, propulsora de paisagens e acontecimentos, proponho alguns haicais. Desejo intercalar à formalidade quase descartável de um ensaio escrito na web intervenções ao sabor de meus respiros. Haicais (ou haikus) são poemas curtos de origem japonesa que se firmaram no Brasil ao fim do século XX. Concisos, costumam formar imagens por meio de três versos, a partir de elementos da natureza.

Trago como referência o trabalho da poetisa curitibana Alice Ruiz [7] e suas múltiplas paisagens. Nesse exercício, o haicai acaba aproximando literatura e artes visuais, transformando poemas em fotografias [8]. A forma é reconhecida por materializar imagens simultâneas num acontecimento, quase como se empregassem no conjunto uma única tela. Talvez porque no ocidente nossa escrita seja outra, ainda insistimos em justificar imagens pela escrita e vice-versa. Aqui, nesse experimento, o contrário. A escrita deve à imagem, a imagem deve à escrita. Não se explica, relaciona-se. Foi assim que encontrei uma maneira de devolver as provocações do meu corpo-memória em deslocamento e intensa confusão nas duas experiências away dos palcos italianos.

 

parece um quadro

e vou me enfiando

até não sair mais [nunca]

 

A instalação coreográfica de Luciana Lara apresentada no Centro de Artes da Maré configura essa primeira incursão à incerteza dos limites entre eu e o outro, público e plateia e, neste caso mais específico, entre humanidade e lixo (humano?). De carne e concreto [9] examina a condição humana do corpo nas cidades, afundando-nos na dúvida ontológica do sujeito-objeto a partir de metáforas cênicas para a utilidade, o consumo, a velocidade, entre outras formas de controle sobre a vida de concreto nas metrópoles. Essas imagens são contrapostas a exaustivos estados de corpo, negociando picos de intensidade com as instalações (in)umanas criadas ao longo do experimento.

A divisão corpo-máquina é uma obviedade dramatúrgica desde que as revoluções industriais instalaram a reprodutibilidade técnica no cotidiano das cidades. Por essa via, De carne e concreto não anuncia uma novidade [10]. A condição binária natural-artificial nos é insistentemente lembrada em nossas relações com a arte e com os dispositivos a que estamos sujeitos. O inesperado está, contudo, na maneira como essas imagens vão se construindo com as pessoas [público e artistas] em cena. Há sobreposições e disrupções, teceduras que nos fazem trafegar por imagens confusas, limítrofes entre o humano e o inumano. E, se em alguns instantes encontro vestígios de um corpo vivo, noutros me deparo com o desespero da pilha de lixo que avança como condição cênica dos corpos nus, tirando-lhes as roupas. O lixo fora dos sacos, os corpos fora das roupas. Em que medida não nos tornamos também sacos de lixo, amontoados de futilidades e acúmulos materiais? Há momentos em que a mesma imagem cênica serve à carne do corpo e ao concreto das cidades. Ainda seria possível dissociá-los?

Começo o experimento com uma sacola na cabeça. Foto: Beatriz Veneu.

O Centro de Artes da Maré me parece uma das melhores cartadas do Panorama às coisas que fogem da configuração palco e pedem imersão em grupo. Um ambiente sem as reconhecidas hierarquias espaciais, lembra mais um galpão fabril. Aberto em 2010, o Centro é um projeto conjunto da Redes da Maré [organização da sociedade civil] com a Lia Rodrigues Companhia de Dança. O galpão à época sem teto, abandonado há mais de 15 anos na região da Nova Holanda, a uma quadra da Avenida Brasil, passou por inúmeras reformas estruturais até sediar exposições, festivais, encontros e aulas de dança para a comunidade. Ali, o Festival Panorama tem organizado residências e apresentado trabalhos cuja experimentação cênica aproxima público e intérpretes.

Teto altíssimo, paredes gigantescas e um largo horizonte. Minhas incertezas se instalam assim que entramos no espaço cênico, todos com sacolas de papel na cabeça [a orientação é de que não as tirássemos até o desenrolar dos acontecimentos]. Antes da entrada, somos recebidos pela própria Luciana Lara, a quem aviso que meu cabelo vai engatar numa das ligas da sacola. Não deu outra [risos]. Enquanto chegavam mais e mais pessoas, vou ao banheiro arrumar o cabelo engatado. Então me vejo no espelho.

[passado] –

A sacola na cabeça inventava uma outra cabeça. E mesmo me reconhecendo, era naquele instante um anônimo de mim mesmo, já que minha face não era totalmente visível, meus sentimentos também não o seriam a ninguém. Outros tantos “ensacolados” me acompanharam ao banheiro. Engraçado conversarmos sobre as sacolas. Lá por aquelas horas já estávamos num universo outro: uma instalação da qual nossos corpos ensacolados faziam parte.

 

olho no olho

dente por dente

sem sorriso a ver

 

Alguns minutos depois, os ensacolados eram o preenchimento do espaço cênico. Espera, algumas grandes sacolas plásticas também. Sacolas humanas, sacolas de entulho, apenas sacolas… Sem saber quem era quem, quem ia dançar, quem ia assistir, quem assinava o experimento [todos estavam lá], fomos andando pelo espaço. Era possível recapitular apenas os conhecidos ou com quem nos deparamos antes de entrar. A quem não conhecíamos não havia como imaginar o rosto… era uma bela ladainha mental, imaginar os rostos debaixo dos sacos. Quantos anônimos! O anonimato da cidade, mas num nível mais hardcore. Bem possível que pessoas andem pelas ruas ensacando as cabeças de quem não querem ver, não duvido nada. De olhos nos olhos, tive alguns encontros estapafúrdios, como sempre [11]. Lembro de uns bem verdes, difíceis de encarar. Pareciam até ganhar mais profundidade segundo o saco na cabeça. Nessa altura, a configuração cênica nos fazia andar em grupo. E podíamos nos encarar em roda. Alguns corpos pareciam organizar isso, encabeçando os acontecimentos. Sem que percebesse uma transição, fomos tirando as sacolas das cabeças. Uns dos outros. Era sempre alguém: um outro que vinha a nosso encontro.

 

deitado no chão

o corpo estafa

em círculos

 

Sem as sacolas de papel, vimos corpos dançarem repetidamente uma célula coreográfica. No chão, foram se aproximando cada vez mais dos outros sacos, os de lixo cênico. Do encontro, a segunda instalação. Corpos insanos rasgavam os sacos atrás de mais e mais, a fim de os enfiar nas próprias roupas. Enquanto isso ocorria, observava a natureza do entulho. Nada orgânico, apenas plásticos e papéis… objetos recicláveis. Penso sobre a condição mimética desse lixo selecionado, mas também sobre a segurança dos performers ao se fundirem com ele. Uma instalação de lixo pode ser higiênica? Ou não é lixo? Bem, o odor incomodava, alguns vestígios de chorume que viriam, também.

Durante meus devaneios em cena, converso com Luis Garay [12] logo ao lado e isso ocasiona uma lembrança repentina de seu trabalho Futuros Primitivos, que pude assistir em São Luís no Conexão Dança [13]. Lá, outra natureza de lixo. Um lixo muito sujo e arriscado, inclusive, a um triz de machucá-lo, ele e os outros performers. Com duas imagens distintas na cabeça, refaço a pergunta: a repetição do lixo deve ser higiênica ou arriscada? Ou ambas? Impossível materializar o lixão sem estar nele. Tudo seria mimético no mais tardar, talvez segundo a finalidade dramatúrgica.

 

de chorume

nascem corpos

perdidos, à sorte!

 

Depois de virarem coisas de lixo, ficaram agressivamente nus. Digo agressivamente mas poderia dizer tranquilamente. Estados intercalados, a depender do instante. Quando tranquilos demais, me senti envergonhado de estar tête-à-tête, pois o grupo nu se afastou do público. Me afastei em seguida. Como somos vulneráveis…corpos desesperados num planeta abandonado à própria sorte. Talvez esta imagem me tenha sido mais apavorante do que qualquer outro momento da instalação. E a plateia… nesse momento havia plateia. Parecia mais um bando de abutres sobre o que restou do lixo, aqueles corpos perdidos. Não deixei de fazer algumas relações com… os urubus no lixão. Tão livres e dependentes dos restos, da vulnerabilidade. E a nudez brincou… nos entrelaçamentos de si, corpos acorrentados, lentas imagens foram se formando até que o grupo voltasse do canto onde se isolou. Aí já estava beirando a explosão. Foram vários momentos em que estive diante de algum final, muito antes que ele acontecesse de fato. Mas uma imagem me foi audaciosa, brotou da mente como um emblema:

Dali (1943), Criança geopolítica observando o nascimento do home.

Brotou na parede, os corpos nus ainda dançando em conjunto. O chorume escorria por bundas, pernas, peitos, braços, sexos, mas aquela célula coreográfica de antes retornava lentamente com alguém suspenso no ar, apesar do corpo ainda imprensado pelo concreto. Um lapso sobre e com a brutalidade… Eram esses os corpos descartáveis? Mas quão sublime pode ser a existência, logo ela, tão suja! Não há sentido algum. Como algo divino e maravilhoso pode ser tão desimportante? Eternos retornos de estados mentais não equânimes. Morte! Nascimento! Úteros! Ignorância… ah! Eureca. Lixo…

 

um dedo

no umbigo

inquieto

 

Mais uma vez dissolvidos pela inconstância, os corpos retomam o entulho, para ter com ele. E conosco. As pessoas são convidadas ao toque. “Você pode?”. Não sei se posso, ou se consigo. Senti nojo e fugi. Mas também nojo de mim, do inapreensível. Lembro de um cara segurando o quadril de uma performer… ela balançava intensamente ao toque dele. Uma dança esquisita, encontro de sujeito e objeto, do código com a pulsão. Afinal, não eram ambos a mesma coisa? Carne prestes a desaparecer? Qual o abismo ainda possível nesse jogo cênico que o público topou jogar? Não consigo ver esse gesto incutido apenas na representação. Corpos dançam e se afetam mutuamente. O toque, a sujeira, a nudez, de que mais somos feitos? Senti todos brotando do mesmo líquido. Um chorume comum, que me assaltou no instante seguinte, quando garrafas começaram a vir em minha direção. A ira do inapreensível e minha fuga contínua. Sai mais uma vez das proximidades para observar o devaneio raivoso sobre todos aqueles materiais descartáveis. Acho que a carne, ela ainda não aceitou sua própria condição… O concreto fica, a carne vai. O concreto só se move com carne, mas permanece. A carne, ela apodrece. E morta, é engolida pelo concreto.

Enquanto o entulho era lançado aos gritos na parede, vi minha garrafinha de água na mão. Já estava seca. Lancei-a ali mesmo, no lixão cênico. Mas o desejo… bem, queria mesmo, aos berros, jogá-la na parede. Conversei com algumas pessoas assim que o experimento acabou e encontrei algo em comum, a intensidade de identificação naquele instante de jogar o que não nos serve na parede, extravasar a raiva e o absurdo de estar nas cidades. Quanta coisa inútil. Para beber uma água, antes, o plástico. Para sair do lugar, antes, o automóvel. De que vida estamos falando nas cidades? Tecnologia, higiene e silêncio. E assim que os berros cessam, também a cena acaba. Despedem-se do lixo num abraço coletivo. Deixam-no conosco, com os aplausos que não vêm buscar. O que nos resta? Aplaudir o lixo a que também estamos submetidos como performers.

De carne e concreto – uma instalação coreográfica encerra sua imersão num abandono, que fez de mim a cena de um acontecimento. A instalação sou eu. Um corpo também sou. Mas em que medida há cena? Instalação… estou confusa de novo. Haveria planejamento exato para o encontro de corpos que nunca se viram? Nem instalação, nem cena. Um risco coreográfico. Quanto menos palco, mais risco. A participação é imprevisível. E se eu ficar nua, aniquilar essa experiência escrota e burguesa de plateia em arte contemporânea? Não fiz. Mas sou dionisíaca [risos]. Cuidado com os corpos dionisíacos nas instalações. Não é um aviso, mas um ode à loucura. Se a tênue linha entre público e artista ainda exigir a polícia, há sempre o “louco” para peitá-la. E engraçado, a única polícia visível era a própria plateia [assim ela se tornava identificável]. Sempre na expectativa de um próximo acontecimento, como se não fossemos nós também a possibilidade do gatilho. O objeto é o outro, por isso esperá-lo surgir. Não posso pretender me tornar o outro, apesar de já sê-lo [sintaxe hipócrita].

[presente]-

Saio do Centro de Artes da Maré e não há nada mais inquietante do que se deparar com imagens da instalação mesmo que fora de cena. Na rua, vejo roupas, nudez camuflada e lixo. Alguns minutos se passam, pego um ônibus cheio, que será assaltado logo em seguida. Quatro adolescentes à mão armada. O que querem? Apenas os celulares, “ninguém precisa ser ferido”. Mas a carne, por vezes, também se torna um celular. E ao meu lado alguém desafia o assaltante, até levar umas porradas. O ladrão, inexperiente, vai embora, desiste da vítima. Talvez o medo de ser pego tenha sido maior. E de novo, a carne. Tudo muito ordinário e descartável. A tecnologia, contudo, prova seu avanço sobre o corpo. Está acima da carne. Vale mais. Seu descarte cíclico sempre pode servir à economia das cidades. E não que sejam necessariamente antagônicos, corpos e dispositivos estão amalgamados num processo de substituição. Estamos tão alienados de nossos corpos que não me parece inédito pensar isso depois de duas guerras mundiais. No entanto, se entre nós e os dispositivos há uma série de sensações, quantas vezes damos vazão a isso, de fato?

 

boa sorte

no concreto,

é pesado

 

Depois do assalto, pessoas desconhecidas conversando dentro do ônibus – talvez não o fizessem noutra circunstância. O rapaz que apanhou do ladrão anda comigo alguns quarteirões. Na despedida, poucas palavras. Sigo pensando na Maré, naqueles corpos exaustos, em paisagens avulsas. Eu, apenas certa de que tantas imagens num único dia me deixaram nua, vestida naquela pouca roupa e cheia de concreto ao meu redor.

[continua…]

 

Tiago Amate é jornalista, cineasta e artista-pesquisador no Programa de Pós-graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia. Atualmente pesquisa as relações entre videodança, autorreferência e ciberespaço da web. Trabalha no projeto Aloka das Américas, para o qual desenvolve interseções entre os processos de subjetivação e as experiências estéticas da videoarte contemporânea, com ênfase na linguagem da videodança. Atualmente, é artista residente da Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Desde 2012 escreve poesias para a página <<dospedacosnajanela.blogspot.com.br>>. Participou da imersão do Laboratório de Crítica no Festival Panorama no ano de 2015 e 2017 e do livro Performar Debates: LabCrítica no Festival Panorama e outras dobras (2017).

 

[1] Música disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1hyeJ4CZgqE>. Acesso em: 15/11/2017

[2] Texto intitulado Critérios de importância: “Isto não é importante, isto é importante?”. Disponível em: <https://labcritica.com.br/criterios-de-importancia-isto-nao-e-importante-isto-e-importante/ >. Acesso: 15/11/2017.

[3] Livre tradução do autor para o seguinte trecho: “I will always have you, inside of me”.

[4] Conceito usado por Thereza Rocha (pág. 82) em O que é dança contemporânea? Uma aprendizagem e um livro de prazeres. Salvador, Conexões Criativas, 2016. “Cada dança pede um corpo”. Assim, a pesquisadora reafirma uma poética da dança conformada às corporeidades dançantes em processo de pesquisa, alertando para suas multiplicidades em ação.

[5] Livre tradução do autor para o seguinte trecho: “I’ll always find them there. In my memories”.

[6] A pesquisadora Lígia Tourinho dialoga com essas categorias de Marianne Kerkhove a partir das relações entre dramaturgia e dança. TOURINHO, Lígia. Crítica, uma poética de transcrição. In: (org) ANDRADE, Sérgio. CHALUB, Silvia. Performar Debates: Labcrítica no Festival Panorama e outras dobras. Rio de Janeiro, Gramma: 2017.

[7] Sobre a autora. Disponível em: <http://www.aliceruiz.mpbnet.com.br/index.html>. Acesso em: 20/11/2017.

[8] Sugiro algumas outras informações neste sítio: <http://www.recantodasletras.com.br/teoria-literaria-sobre-haikai/1135375>. Acesso em: 20/11/2017.

[9] Ficha técnica disponível em: <http://panoramafestival.com/2017/de-carne-e-concreto-uma-instalacao-coreografica/>. Acesso em: 20/11/2017.

[10] Agora mesmo me recordo, inclusive, de uma videodança que joga audaciosamente com esse abismo do chavão corpo-máquina, tão recorrente ele é em poéticas contemporâneas de dança. Gravity – um revê de demain, de Natalie Dufraisse, é um stop motion que contrapõe o peso das cidades à leveza da natureza. Mas também é uma provocação ao mito Adão e Eva. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=l708jdxNlZs>. Acesso em: 21/11/2017.

[11] Poema que surge neste instante da escrita refaz sentidos das minhas experiências de olhar. Disponível em: <http://dospedacosnajanela.blogspot.com.br/2017/11/anonimo.html>. Acesso em: 21/11/2017.

[12] Artista argentino que participava do Panorama 2017. Biografia disponível em: < https://luisgaray.hotglue.me/>. Acesso em: 21/11/2017.

[13] Festival internacional de dança contemporânea realizado no Maranhão desde 2008. Informações disponíveis em: < https://www.conexaodanca.com.br/ >. Acesso em: 21/11/2017.

 

© Texto produzido durante a Imersão LabCrítica no Festival Panorama 25 + 1. <<Saiba mais!>>