Critérios de importância: “Isto não é importante, isto é importante?”

Começo a algumas milhas de distância, como Madonna em Miles away. Danço partindo do tempo para falar no intervalo entre coisas que vi e não vi, e que, exatamente por isso, quero ver.

Volto então a 2014, quando me despedi do Panorama com o Biomashup de Cristian Duarte. Uma experiência estética de impacto no Centro de Artes da Maré, seis bailarinos lançados à exaustão do movimento, repercutindo em presença diferentes histórias corporais. As caretas de dor e os corpos vestidos de branco, ensopados de suor, Duarte os destina ao desfile sinistro e exuberante do incógnito, abandonando a monotonia e a mimese cotidiana.

Nas extremidades dos corpos, um líquido azul brilhante encerra a cena e os performers nela. Haveria alguma finalidade na exaustão senão o gozo? Quais sentidos teria um corpo no mundo? Se mãos carregam um universo alheio ao corpo exausto, há sempre formas de escapar da reprodução, sugere Cristian. Afetação total. Cogitei dançar ali mesmo, na Avenida Brasil, quando da volta para casa.

Naquele ano, o Panorama tematizou “a festa como ato político” ao celebrar encontros dançantes no Rio de Janeiro, especialmente no episódio memorável do Parque Lage. Corpos pelados em encontros de toda ordem; os encontros em celebração na piscina. Capturo esta cena e Biomashup, em 2014, como pontos de tensão para jogar com referências do festival em 2015.

Passado um ano, reencontro o festival ainda compromissado em exibir atualizadas investigações em dança contemporânea, mesmo diante do cenário de desmontes econômicos no país, especialmente no fomento à cultura. Motivada pela relação entre escrita e dança, verbo e corpo, a curadoria selecionou obras e artistas com evidentes relações entre discurso, palavra e movimento. A abertura de 2015 trouxe a aparição da portuguesa Vera Mantero nos jardins da Escola de Artes Visuais do Parque Laje. Ela dançava O que podemos dizer do Pierre. Sentadas na grama, pessoas contemplaram durante 20 minutos um corpo se mexer ao som das palavras francesas de Gilles Deleuze, falando de eternidade e imortalidade numa aula sobre o filósofo holandês Spinoza. Mantero estava a se esvanecer na penumbra do fim de tarde quando a “aula” enfim acabou.

Um desaparecimento quase simultâneo da luz do céu, do corpo feminino de Mantero e da voz masculina de Deleuze. Quase. Pois pensar na voz do homem que se mantém alguns segundos além, depois de Mantero parar de dançar, remonta ao espaço do discurso, da fala que ainda está lá. E se a escrita de Deleuze convida a vários outros sentidos (metáforas) que não os de Mantero, teve, mesmo assim, de coexistir com aquilo que a performer atribuiu à cena. Na experiência sonora do discurso falado, que se posterga como escrita, quando a história formal se faz masculina pelo falogocentrismo, esbarramos na dança de Vera Mantero, no corpo da mulher que se esvanece para desaparecer da história. O lugar da performance, que não é reprodutivo, nem metafórico, como o discurso de Deleuze.

Quando pensa a performance, Peggy Phelan afirma uma recusa à economia das substituições construídas pelo discurso. E aí o desafio que a dança impõe à escrita, de transformá-la em fala performativa, ao se esquivar da fala que constata e dá significado às coisas. Mantero lança um desafio parecido ao discurso por meio do paralelismo de sua obra: há um Deleuze que fala, há um corpo que dança, eles se encontram, se afastam, se reencontram, se despedem novamente, fazendo ou não sentido juntos. Nessa inconstância, a fala de Deleuze perde, então, o status metafórico, deixando de significar apenas enquanto sistema de troca e de produção de sentido. E Mantero termina a performance antes que o filósofo conclua seu pensamento. Desaparece como o feminino, desaparece sem assumir metáforas.

Dessa apresentação surgiram outras questões interessantes, levantadas no LabCrítica 2015, sobre a relação escrita-dança. Alguns minutos antes de a portuguesa tomar a grama, recebemos uma tradução da aula de Deleuze que seria usada enquanto som da performance. A tradução trazia as intervenções de Mantero sobre a fala, incluindo as repetições de palavras e frases, por exemplo. No áudio, a performer tentou enfatizar aquilo que classificou como “interessante” na maneira de falar do filósofo francês, evidenciando algo de sensível num discurso que costumeiramente é lido de maneira tão racional. Com essa tradução em mão, algumas pessoas conseguiram lê-la antes de a performance começar, outras não. E nossas perguntas surgiram disso. Seria mesmo importante chegar ao texto de Deleuze no momento da dança de Mantero? Pensando nos paralelismos criados pela coreógrafa, provavelmente não.

Instigante pensar que o próprio texto oriundo da relação Mantero-Deleuze estava a fazer a mesma pergunta. Pergunta que a portuguesa repetiu várias vezes em sua performance: “O que significa, nesta categoria, o mais importante?”.

A pergunta, que foi estendida ao debate de outras peças do Panorama 2015, se coloca no domínio específico do regime de tradução para obras estrangeiras que se munem da palavra. Como dar acesso ao público brasileiro que não é fluente em outros idiomas? Isso é importante ou não tão importante para compreender e apreender a obra? Importante ou não, discurso e palavra tornaram-se centrais em alguns dos debates do LabCrítica. Teríamos nos esquecido do corpo? Ou dança e escrita figurariam num peso uno dentro da dramaturgia de cada obra? É possível que cada uma delas tenha respostas diferentes para isso, como a peça Cheap lecture, trazida pelo duo ítalo-inglês Matteo Fargion e Jonathan Burrows. Neste caso, as limitações do idioma não só foram responsáveis pela aproximação (ou não) do público com a obra, como a curadoria assumiu, trazendo-a ao Brasil, a dificuldade do festival em tornar acessíveis os elementos caros à experiência cênica proposta pelos artistas.

Limites

Na segunda apresentação do solo de Vera Mantero, uma situação inesperada me chamou a atenção. Um jovem sentado mais próximo de onde a performance ocorreria foi obrigado a sair do local pela equipe de produção do festival, junto de mais dois seguranças. Houve uma coerção clara, quase um apelo à ordem: “se não sair, nós tiramos à força”. Ele se recusou várias vezes, argumentando, inclusive, o teor “deleuziano” daquela obra, mas enfim cedeu. Um dia antes várias pessoas haviam se sentado no mesmo lugar e não houve problema, até porque havia um público muito maior assistindo à performance.

O corpo do jovem foi expulso da grama para a artista dançar. Achei estranha essa zona limítrofe. Existem corpos autorizados, outros não. O de Vera Mantero e demais artistas convidados possuem autorizações legitimadas pelo festival. O meu e de outras pessoas a assistir à performance são limitados, condicionados ao próprio regime em que a arte se faz arte e pode se apresentar. A zona limite, onde vejo um corpo liberto para propor uma experiência estética diante do meu, que está preso ao pacto de espectador, traz questões como a natureza discursiva dos festivais de arte, das autorizações, das assinaturas, quando alguns podem e outros, não. Em 2014, os corpos que se jogaram na piscina do Parque Lage durante a festa de abertura criaram uma situação parecida. Aqueles corpos não podiam estar naquela piscina à noite, talvez em horário nenhum. Ao se jogarem nus diante do Cristo Redentor, o festival teve de pagar por ultrapassar os limites da moralidade no espaço sob locação.

Limite é um tema que muito me interessa cenicamente. Parece ser um lugar-comum de tensão na experiência do corpo que dança para alguém. A dança borra o limite, borra a imposição dos corpos estáticos, mexendo (literalmente) com o modus operandi de estar neste mundo. O corpo quase que faz uma pergunta audível quando dança: por que vocês não dançam também? Quando a afetação chega a tal ponto, percebo estar diante de corpos em desaparição na linguagem. E o Panorama permite o transbordamento dessas questões, mesmo se porventura não desejar, porque nele se dança. Como diria Alain Badiou, em seu Pequeno manual de inestética, “o gesto da dança deve sempre ser como se inventasse seu próprio começo. Brincadeira, é claro, pois a dança liberta o corpo de qualquer mímica social, de qualquer coisa séria, de qualquer convenção”. Esse “começo”, portanto, independe da legitimidade ou do status em festivais de arte contemporânea. Dançar não se restringe a uma condição de quem pode ou não.

Ao ouvir Nayse López, diretora geral do Festival Panorama, falando na UFRJ sobre Untitled I will be there when you die, percebi o ponto limítrofe da dança problematizado outra vez. A condição humana no trabalho de Alessandro Sciarroni com os quatro malabaristas era o limite. Os malabares quando não mais malabares, os malabaristas quando não mais malabaristas. Fiquei ansioso pela apresentação na Cidade das Artes e o que encontrei foram corpos se defrontando com as barreiras de estarem presentes, os limites de suas próprias condições motoras no palco. Os malabares quase como obstáculos da presença, organizados pelas obrigações de lançar e capturar, que, quando não cumpridas, tornam-se decepcionantes.

Os quatro italianos em cena não se debruçavam sobre o virtuosismo de não errar, mas se afetavam, sim, pelo erro. E o erro, assim como o acerto, trouxe a inconstância cênica necessária às imagens em camada de Sciarroni. O que vai continuar aqui depois da morte? Projeções multicoloridas, corpos confundidos em meio aos malabares? Afinal, quem estava ali sob controle? Eram os malabares, eram os performers? Sciarroni traz perguntas, não respostas. E coloca o público num estado abismal, do não lugar. Repito: existem obrigações. Mas também existe o prazer. E há alguma coisa ali nesse limite indizível.

Esse trabalho é uma segunda parte de um projeto maior, no qual Sciarroni continua uma pergunta: Will you still love me tomorrow? Sciarroni pensa sobre o que vem em seguida, sobre a relação da certeza com a continuidade, a relação com o tempo. Então, deixo uma sugestão à curadoria do festival: a de trazer a outra parte da obra ainda inédita no Brasil.

O espetáculo é FOLK-S, em que seis bailarinos têm liberdade de abandonar o palco e não voltar mais, partilhando o mesmo poder de abandono da plateia. Os performers são atravessados por uma dança de origem bávara, batendo sapatos e pernas com as mãos. E a performance então se utiliza do folclórico, da celebração, e chega à iconografia dos ritos religiosos, beirando a evocação dos festivais e martírios. Em crítica, o The New York Times atentou para esse limite da performance, quando sobra alguém no palco ou na plateia. A sobra é incerta. E então acaba. Quem cansar vai embora, não volta mais.

Sciarroni fricciona presenças de corpo a partir de deslocamentos, foi o que o coreógrafo trouxe ao Panorama. Malabaristas que, apesar dos malabares, não são malabaristas em cena. As referências mudando constantemente, a dança beirando a escultura móvel, quando já começamos a nos perguntar sobre os limites desses corpos, em seguida sobre nossos próprios limites. O que, de fato é possível ver nessa dança? Quais os limites de nossos sentidos e sensações? E se nossos pontos de referência mudassem de repente? Assim, a lógica de lançar malabares se desestrutura. Quase como uma evocação a um “não lugar”, onde o tempo se transforma, sem passado nem futuro; sem palco. Em 2015, Sciarroni trouxe elementos próximos ao que Christian Duarte realizou com perspicácia em Biomashup, no ano anterior. Sciarroni desapareceu com seus bailarinos da cena, postulou questões no limite da presença. Escapou à reprodução dos corpos.

Em I will be there when you die, o coreógrafo italiano evocou os limites para borrá-los, anunciando tensões e resistências num concerto de imagens e sons. Que os limites continuem tensionado propostas. A dança precisa ser mais celebrada, precisa de corpos em festa.

 


NOTAS
  1. Questões colocadas por Gilles Deleuze no áudio editado por Vera Mantero para a performance O que podemos dizer do Pierre.
  2. Vídeo gravado pela equipe do Festival Panorama em 2015. Consta breve entrevista com a artista portuguesa. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=FwDBX9bo8HM>. Acesso em: 23 mai. 2017.
  3. Neologismo cunhado pelo filósofo francês Jacques Derrida a fim de se referir à centralidade do falo ou à convicção da superioridade masculina.
  4. PHELAN, Peggy. A ontologia da performance: representação sem produção. Trad. André Lepecki in Revista de Comunicação e Linguagens. Lisboa: Edição Cosmos, 1997. p. 171-189.
  5. BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p. 80
  6. Atividade do LabCrítica que promoveu um debate com a diretora do festival, durante a semana de abertura do segundo semestre letivo de 2015 para os cursos de dança da UFRJ.
  7. Informações em vídeo produzidas pelo Festival Panorama 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=A_jyU0O5EhM>. Acesso em: 28 mai. 2017
  8. Trecho do espetáculo disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=c9PMMvnKGNw>. Acesso em: 28 mai. 2017.