Chamem os vândalos!

Em tempos de “Fora, Temer!”, “Fora, Cunha!” e “Fora, Cabral!”, o espetáculo Batucada, de Marcelo Evelin, apresentado no Museu de Arte do Rio, em novembro de 2016, na programação do Festival Panorama, não poderia ser mais pertinente e instigante.

Concebido para o festival Kunsten des Arts, de Bruxelas, em 2014, foi recriado com participantes locais em Frankfurt em 2015, em Teresina, no Rio (no Festival Panorama) e em muitas outras cidades brasileiras e do mundo afora. Batucada é ativado por, em média, 30 a 50 artistas profissionais e não profissionais que se apresentam mascarados e que produzem incessantemente uma batucada de panelas. Em vários momentos, a obra nos desestabiliza e logo chegamos a um lugar de possibilidade de quebra de apatias.

Batucada nos coloca entre uma manifestação carnavalesca, uma manifestação, uma passeata de rua, uma celebração. Os mascarados performáticos, inicialmente, intimidam pela postura na aproximação brusca, pela máscara de nariz pontudo e pelo porte de um toco de madeira nas mãos. Muitas vezes nos esbarram, passam por entre nossos corpos, fazendo um percurso surpreendente. Subitamente podem estar atrás de você sem que se perceba. Nos parecem ameaçadores. Nos mantém conectados pela curiosidade, medo e olhares intensos. Em contraponto à agressividade, o teto do ambiente onde se misturam plateia e batuqueiros está repleto de balões em forma de corações vermelhos, amenizando o ambiente mais hostil que se instaurou desde o princípio.

Nesta instalação coreográfica, o estar coletivo, a performance, não é privilégio apenas de bailarinos, mas de qualquer pessoa interessada em conhecer e trabalhar as potencialidades do corpo. A seleção prima na escolha de corpos bem diversificados. O corpo tem diferentes camadas e todas elas podem trazer transformações para a sociedade.

Desde o início dos anos 2000, as manifestações populares no Brasil vêm se intensificando e tendo um papel realmente modificador da sociedade, como na Revolta do Buzu, em 2003, em Salvador, e a Revolta da Catraca, em 2005, em Florianópolis, ambos os movimentos relacionados ao aumento de tarifas das passagens de transportes públicos. Em 2011, eclode a Primavera Árabe, onda de protestos, revoltas e revoluções populares contra governos autoritários do mundo árabe, que influenciou muitos movimentos de protesto em várias partes do mundo.

No ano de 2013, a sociedade brasileira foi às ruas, numa manifestação jamais vista antes, em que a representação política contemporânea era colocada em questão. O corpo coletivo reivindicando, se colocando como agente político. Com a intensificação destes movimentos, algumas medidas de repressão foram tomadas, como a proibição, em manifestações públicas, do uso de máscaras em 2014. Máscaras eram associadas a atitudes de vandalismo.

Os vândalos foram um povo que coexistiu com o Império Romano e, no ano de 455, invadiu e submeteu Roma, saqueando a cidade ao longo de duas semanas. No século XVIII, temos notícias da utilização do termo para denominar depredações, destruições de obras de arte e prédios públicos – sentido ainda empregado hoje em dia pela grande mídia. Porém, não podemos deixar de notar que a denominação “vândalo”, hoje, é, em geral, destinada às massas populares, saturadas de tanta humilhação, opressão policial, violência e ódio, que se lançam contra as instituições que representam o pior que existe no governo.

A obra de Marcelo Evelin nos remete a essa junção de corpos que, em ação de cidadania, usam a armadura/máscara para a mobilização de ataque. A potência dos corpos juntos e o fato de estarem mascarados reforça a anulação da identidade individual para se assumir identidade grupal. São corpos que, no ato de criar, de estar em si, com diferenças encarnadas, parecem uníssonos e dissidentes, concomitantemente. Estar em si em toda sua especificidade e estar no outro, no coletivo, no mundo… Podemos sentir a verticalização e horizontalização dos corpos na Batucada de Evelin.

Não podemos deixar de apontar que a concepção desse espetáculo é anterior também ao processo de impeachment da presidenta Dilma Rousself, no qual a simbologia do “bater panela” veio se associar à intolerância à ideologia de esquerda, aliada a um conservadorismo de parte da nossa população. Dançar essa obra hoje faz com que a batucada acione outros sentidos que fazem ruir a reapropriação do gesto de bater panela, de fazer barulho, pelos movimentos reacionários.

Ao longo da performance, o batuque se intensifica e os mascarados vão retirando suas roupas e podemos até sentir o cheiro dos corpos suados, cheios de energia e calor. Corpos de diversas formas, cores, potentes na sua diversidade, fora dos padrões, sem padrões. Nessa altura, já estamos envolvidos numa catarse selvagem. Todos se enfileiram num posicionamento de ataque tribal, se deslocam de uma sala a outra, passando por corredores, nos incluindo num movente coletivo de imensa vitalidade. A obra quer que disponibilizemos nossos corpos para lidar com o instante do momento presente, quer que nos reorganizemos ali, naquele momento.

No final, vamos nos deslocando, descendo as escadas até a saída do museu, onde o grupo se coloca deitado nas portas de saída. O público forçosamente tem que passar por entre membros, sexos, cabeças e máscaras para sair do espaço do museu. Na rua, portanto, se finaliza o manifesto/batucada.