Até a terceira ordem não acabe com nada – conversa com os Solos da marrabenta de Panaibra Gabriel Canda

Entendo que exercitar a crítica a partir de (e com) trabalhos artísticos, principalmente hoje, seja também voltar minha escrita para a política. Os atuais e possíveis contextos que se desdobram com o avanço de certa vontade fascista, em diversos lugares do mundo, e que pisoteia nossos corpos (alguns mais pisoteados que outros), têm de ser pensados como uma camada pela qual praticamente todos os nossos esforços de fala tem de passar. É preciso levar tais forças e conflitos em consideração quando nos propomos a pensar movimento, corpo e coreografia.

Em Espaço e tempo: os solos de Marrabenta, trabalho do moçambicano Panaibra Gabriel Canda, apresentado na edição de 2010 do Panorama Festival e reapresentado na edição deste ano, dança-se algumas questões que dizem respeito a um corpo colonizado:

ELE É FILHO DE… ELE É MOÇAMBICANO, ELE É UM CIDADÃO AFRICANO QUE FALA PORTUGUÊS, ELE É COMUNISTA! ELE É SOCIAL DEMOCRATA, ELE É PORTUGUÊS. COMUNISTA. DEMOCRATA. AFRICANO. FILHO DE…

Panaibra enfatiza imobilidades que estarão presentes em boa parte de sua movimentação dançada. Enfatiza essas imobilidades pelas pausas que lança mão e pela constante operação de repetição; é como se o jogo de variar e passar por poses e posturas (imagens imóveis em meio ao movimento) ilustrassem ou tentassem constituir uma possível identidade. Pontuar. Pisotear a dança demarcada no chão.

São posturas/poses, imagens, justapostas por um processo de montagem que constrói um texto em dança. Solos dentro de solos, que podem conversar ou não, assim como estar em relação ou não, entre si. E é justamente através da ideia de pôr esses signos, ou seja, essas poses, posturas e imagens, em movimento, que Panaibra dança um problema do corpo colonizado. Existe aí talvez alguma coisa de interessante e que passa pela própria escolha de movimentação de Panaibra, coisa essa que pode nos dar a ver como ele pensa a construção mesma de seu corpo.

Colocar em movimento e em fluxo construções imagéticas que nos são praticamente paradas, petrificadas em nossos imaginários (seja pelo poder conferido a algumas dessas construções, seja pelo próprio processo de apagamento sofrido por outras), quer dizer, também, confundir essas imagens e evidenciar os vetores tensos de poder que constituem suas relações. Então, poderia se dizer que essa dança também é sobre como o “pôr em movimento” evidencia e expõe, portanto também pode mover e modificar, algumas dinâmicas desses vetores de forças. Cada solo opera para a construção desse corpo-problema, não de forma ordenada, ou necessariamente cronológica. Panaibra se apresenta como produtor e articulador de imagens que conversam com nossas memórias comuns de colonizados e/ou colonizadores. A partir de operações de anulação e construção, se coloca em dança o problema dos poderes dentro desse corpo colonizado.

Mas nesse processo de assimilação e tensão, de anulação e construção, o que se tenta acabar e o que se tenta construir? Existem várias danças na obra Espaço e tempo: os solos da Marrabenta que, por sua vez, são também um discurso crítico sobre coreografias e formas de assimilação do corpo negro, do corpo africano, do corpo tribal… Esse é o discurso daquele que dança: Panaibra, que só é possível quando ele põe em movimento outros discursos e concepções de corpo que lhe foram impostas. Nesse sentido as falas de ordem deflagram:

É PRECISO ACABAR| COM O CORPO TRIBAL!

É PRECISO ACABAR| COM O CORPO RELIGIOSO!

É PRECISO ACABAR| COM O CORPO NEGRO!

Como acabar com um corpo que é, na verdade, a sua característica mais marcante para a sociedade? Que carrega uma história e um fato social para além da história do indivíduo? Eis a contradição que Panaibra quer detonar em Espaço e tempo: os solos da Marrabenta. Ele dança ser negro a partir da tentativa de acabar com esse corpo, para dar a ver outras construções, que constituirão os próximos solos, que detonam outras falas de ordem, que vêm de outros contextos políticos e de outras necessidades de corpos para outras coreografias de poderes, e que no final das contas parecem sempre os mesmos. Dançar ser negro, no mundo, implica em um corpo. Como acabar com esse corpo negro? Como acabar a si?

Morre-se tentando ou não se tenta, e mesmo assim, morrendo, não se consegue.

Até a terceira ordem não acabe com nada; porque é justamente na terceira ordem que “se ri”, com Panaibra, da estupidez de todas as tentativas anteriores, pois ele opera essa movimentação com humor e com ironia. Num acordo teatral, a saída que se encontra para a fala de ordem “é preciso acabar com o corpo negro” é uma leve “esfregadinha” na pele que suscita algumas risadas, mas que sabemos muito bem: não funciona, é ineficaz.

Ele não está interessado em acabar com nenhum desses corpos dentro do processo de construção de sua dança, pelo contrário, ele dá a ver a impossibilidade da operação pelo corpo mesmo que possui. Ele dá a ver e denuncia os processos de construção e desconstrução/destruição impostos aos corpos colonizados, principalmente ao corpo negro. Potência política é admitir essa impossibilidade da anulação, essa ineficácia em acabar com algo.

A questão é que para esse corpo-problema não há saída, é uma falsa busca proposta por Panaibra ao longo do desenvolvimento coreográfico. Não se limpa a cor de uma pele com uma “esfregadinha”. Não se acaba com o corpo negro, portanto tampouco se acaba com o corpo tribal ou religioso, seja ele negro ou não. Não se acaba no sentido totalizante empregado à palavra “acabar”, porque o “total” desmorona a cada passagem de um solo para o outro e o “todo”, hoje em dia, anda desmoronando a cada esquina. Esses corpos, portanto, permanecem presentes, mesmo que sobreviventes em rastros, nas construções de novos corpos, danças e movimentos.

Justamente pela impossibilidade de acabar com o corpo negro que se pode pensar a dança de Panaibra como crítica das construções dos corpos colonizados e colonizadores. É preciso não acabar com essa ineficácia. É preciso não acabar com esses corpos. É preciso deixar que dancem, pensem e coreografem os problemas e, nesse caso, os solos da Marrabenta. Que enquanto obra coreográfica dá a ver (pelas tentativas de anulação, pelas tensões e pelas sobreposições de corpos) construções árduas de outros possíveis, a partir de uma dança não homogênea, que se comenta e se contradiz e que, por último, cansa. Exausto, Panaibra termina seu dançar “ser negro” deitado no chão, desmoronando, contando números que nos levam ao momento presente, junto a um ponto microfonado de fala.