Algumas experiências, vários textos e muitas conversas depois – Festival Panorama 2013

Um brinde à memória – inevitavelmente capturada, recriada e transfigurada pelo presente. Com esse convite, o Festival Panorama comemorou sua 22ª edição, realizada entre 25 de outubro e 10 de novembro de 2013. Celebrar esta iniciativa, ela própria um processo vivo e dinâmico, é uma alegria para todos os que se interessam pela dança que é feita hoje.

Este ano, o festival abriu muitas frentes, fez novas parcerias e se espalhou por diversos locais do Rio de Janeiro, cidade onde o festival nasceu e continua crescendo. Palcos de teatros tradicionais, centros culturais, museus, ruas e praças atraíram um público variado, transbordando o restrito círculo da dança.

O povo carioca está nas ruas, ocupando os espaços, cidadania em construção. A programação do festival, consoante com esse momento, trouxe trabalhos que repercutem a relação entre o corpo e a cidade. Levar a experiência e a reflexão cênica para um número maior de pessoas é um caminho a percorrer.

Partindo do geral para o pessoal, o Panorama aconteceu. Para mim, foi especialmente marcante. Como integrante do Laboratório de Crítica, uma das inúmeras atividades da extensa programação desta edição do festival, pude refinar minha percepção para o que hoje chamamos de dança contemporânea. Vibrei com os espetáculos, reativei memórias, expandi meu conhecimento, elaborei textos originados destas experiências e vislumbrei possibilidades futuras. Após me debruçar sobre tudo que vi e vivi, compartilho agora esse ensaio.

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A ponte construída, pela curadoria do Panorama 2013, entre as vanguardas artísticas do início do século 20 e a arte atual põe em evidência a ligação entre momento histórico e expressão estética. Ruptura de padrões, confronto e risco compõem essa trama, explicitando o trânsito entre arte e política. Hoje, no entanto, vemos o papel da memória ganhar novos contornos e enriquecer esse debate, que atravessou com brilho a programação do festival.

É interessante lembrar que, este ano, o balé A sagração da primavera, de Vaslav Nijinsky e Igor Stravinsky, completa 100 anos. Seus rastros, revividos durante o Festival Panorama, desvelaram as nuances que uma obra deste porte pode produzir. A partir dela, Xavier Le Roy e Roger Bernat criaram espetáculos completamente diversos.

Em Le sacre du printemps, assistimos a música de Stravinsky, com sua força extraordinária e heterogênea, reverberar no corpo de Xavier Le Roy. Sua interpretação, inspirada nos movimentos do maestro, transporta o fosso da orquestra para a sala do espetáculo, que mantém acesas as luzes do palco e da plateia. A potência da música comanda a performance; a dança do maestro é sua medida e seu transbordamento. Ainda que Xavier tenha declarado, no seminário que fez parte da programação do festival, que se inspirou apenas nos movimentos do maestro, a blusa vermelha que usa em cena, remete a uma série de recriações da A sagração da primavera, onde a cor tem destaque no cenário ou figurino. Enquanto o bailarino-maestro rege, a plateia-orquestra, como em toda grande arte, fica livre para acessar, à sua maneira, todo imaginário e memória que a obra suscita.

Já Roger Bernat empreende, em La consagración de la primavera, uma experiência coreográfica. Através de comandos transmitidos via fones de ouvido, o público é solicitado a executar movimentos inspirados na montagem que Pina Bausch criou, em 1975, para A sagração da primavera. A estrutura da cena, assim exposta, permite que o coletivo dançarino decida como efetuá-la, dando margem ao surgimento de novas interferências. O resultado do trabalho de Bernat embaça o limite entre criador/criatura e problematiza a noção de autoria, tema caro à contemporaneidade.

Vanguarda hoje

A relação entre vanguardas históricas e dança contemporânea está explícita no espetáculo Le cabaret discrépant. Sua criadora, Olivia Grandville, surpreendeu o público ao transformar os salões do Teatro Carlos Gomes em um cabaré de meados do século 20 onde se difundia o letrismo. Movimento criado pelo romeno radicado na França, Isidore Isou, o letrismo investia na musicalidade das palavras, não na sua significação, e se espalhou pela Europa nos anos 1940. Transposto para o Rio de Janeiro de 2013, encontramos performers instalados em cantos e caminhando pelos salões do teatro enquanto falam, explicam, teorizam, o quê? O público não sabe. A estranheza do acontecimento indicava o que viria a seguir.

Já no palco, os bailarinos tratam de apresentar o Manifesto da dança cinzelada, escrito por Isou, em 1953. Pouco conhecido, o texto tem profunda ligação com as vanguardas artísticas europeias, mais especificamente das artes plásticas, que produziram diversos manifestos nas primeiras décadas do século passado. Em comum, a primazia do conceito.

Alternando papéis, ora palestrantes ora dançarinos, Olívia e seu grupo dão vida às descrições coreográficas do Manifesto de Isidore Isou. Com muita ironia e humor, discorrem sobre a destruição da dança como a conhecemos, a apologia da teoria e a recriação de algo – será dança?

O público, a maioria do meio da dança, pareceu entender o recado e deu risada. Nada melhor do que rirmos de nós mesmos. Ao terminar o espetáculo, porém, um gosto de anticlímax. Tal e qual todo final, enquanto a plateia aplaude, Olivia e sua equipe, de mãos dadas, agradecem. E tudo volta a ser como antes.

As camadas da memória

Lembranças pessoais podem tocar a memória de todos? Se contadas com uma fina sensibilidade para abordar aquilo que nos une e nos faz humanos, sim. O novo solo de Denise Stutz é uma delicada prova disso. Em Finita, Denise convoca palavras e movimentos para preencher o vazio de uma ausência, o silêncio de uma espera. Nostalgia, expressão talvez mais cheia de sentidos que saudade, dá o tom do espetáculo. Mas a ansiedade a acompanha. Denise coloca um disco, dança, conversa conosco, sai do palco, senta na plateia e nos faz imaginar um encontro que está por vir, uma dança que ainda vai acontecer.

É um espetáculo sem afetação, é como um sussurro: finita é a vida. Denise faz um recorte no tempo que passa e segue dançando. Sua presença ainda está conosco depois que deixamos o teatro, contaminando pensamentos e conversas. E então percebo que esse encontro e essa dança que assistimos são povoados por todos os encontros e todas as danças já realizadas e por realizar. No real, na imaginação e na lembrança.

Em outro trabalho de Xavier Le Roy apresentado no Panorama, são levantadas interessantes questões sobre memória e sobre autoria. Seu nome, “Retropectiva”, assim entre aspas, já indica algo que faz referência à outra coisa. Mas é o local escolhido para a performance, um museu, que provoca maior estranhamento. Em cena, quatro bailarinos, cada um à frente de uma parede de uma sala quadrada, realizam composições baseadas em solos criados por Xavier entre 1994 e 2010 acrescidos de movimentos próprios. Mesclam-se fragmentos de memórias do corpo, gestos, movimentos, palavras. Assistimos camadas coreográficas se desenrolando, a construção de um corpo comum, composto por todas aquelas vidas entrelaçadas: criadores, intérpretes e seus fantasmas.

A disposição dos performers, como em exposição no museu, traz à tona questões sobre a recepção da obra de arte, que sempre dialoga com seu entorno. Neste caso, o contexto contribui para que nós, espectadores-visitantes, também façamos parte deste coletivo coreográfico. Caminhando pela sala, escolhendo a qual dos bailarinos dar atenção em dado momento e escutando-os – sim, eles falam conosco, em pequenos fragmentos ou contando suas histórias de vida – nossa participação é vital para que a narrativa aconteça.

Poesia concreta

A relação entre corpo, espaço e contexto aparece superlativa no novo, e semidespovoado, centro cultural Cidades das Artes, na Barra. Sua magnitude arquitetônica foi palco para duas criações bem distintas. Em Onde o horizonte se move, Gustavo Ciríaco nos leva a atravessar o imenso conjunto de superfícies, curvas e ângulos inusitados que compõem o prédio, de maneira lúdica, seguindo pistas. Um grupo de performers – com alguns moradores da Barra selecionados pela produção do espetáculo – conduz nossa atenção através de pequenos relatos e amplas miradas. Que bom perceber que, para além da beleza monumental da Cidade das Artes, existem outros horizontes possíveis. Vejo, na obra de Gustavo, a promessa de construção de imaginários e memórias para este, ainda, não lugar.

Piquenique urbano, de João Saldanha, usa os espaços deste mesmo prédio como cenários para contar a história de um casal, ou de todos os casais. Do idílico passeio no parque, à impossibilidade de estar junto, da solidão necessária até a solidão compartilhada, acompanhamos o desenrolar da trama. Em uma bela e precisa coreografia, os corpos dos dois bailarinos expressam arestas, desamparo e abrigo, mimetizando a arquitetura do lugar, pode-se pensar. No entanto, a narrativa não evolui com fluidez pelos quatro ambientes onde ela acontece, o que acaba causando cansaço e dispersão do público diante da grandiosidade da proposta.

Um passeio pelas ruas do Rio Antigo, onde o andar e o olhar atentos são nossos principais guias. Este é o convite de Marcela Levi e Lucía Russo, em Sandwalk with me. Com fones nos ouvidos que promovem isolamento acústico e com os pés dentro de sandálias/baldes de areia, andamos em grupo, passos lentos, entre o Museu de Arte do Rio, na Praça Mauá, e o Centro Cultural Banco do Brasil, na Rua Primeiro de Março. Uma experiência que trata do sentir a cidade, do curtir o caminho, bem diferente da pressa de superar esse tempo/espaço para logo atingir o objetivo de chegar. Pude perceber com maior apuro detalhes arquitetônicos e geográficos dessa área do Rio, o comércio e o trânsito de carros e pessoas. Porém, a pouca audição e a lentidão me provocaram um encasulamento que acabou por me distanciar da sensação de cidade, que é pura conexão.

Ritmo

Cesena, a mais recente produção da companhia de dança Rosas, revela o quão longe a precisão coreográfica pode ir, afetando com requinte o sensível. Explorado em sua totalidade, o grande palco da sala principal do centro cultural Cidade das Artes exibe, na penumbra, corpos que dançam com vigor e cantam uma sofisticada música do século XIV, enquanto amanhece em sutis gradações de luz e cor, na cena e no figurino. O movimento elíptico e hipnótico dos bailarinos cantantes segue ritmos próprios que se confundem com o ritmo do universo. E pulsa em nós. Não há limite entre razão e emoção, disse a coreógrafa do Rosas, Anne Teresa De Keersmaekere, endossando o que foi visto no palco. Essa afirmação repercute, com toda sua potência, em sua obra.

Um casal, uma mesa, duas cadeiras. Assim inicia o duelo de palavras e frases, que se transmutam indefinidamente, escondendo e revelando significados. O uso da voz como parte do gesto performático é realizado com perícia por Sofia Dias e Vítor Roriz, em Um gesto que não passa de uma ameaça. Toda a ação sugere a incomunicabilidade dos corpos, mas é quando cessa a fala que os dois começam a ensaiar uma ameaça de proximidade. Mesa e cadeiras se metamorfoseiam, a cena ganha uma cadência frenética e repetitiva, já não mais com palavras, mas movimentos. Um tanto cansativo para quem assiste e para quem realiza, suscitando alto grau de ansiedade, esse padrão é, por vezes, interrompido quando o casal bebe junto um copo de água – uma trégua para o encontro. Plasticamente simples e belo. E principalmente interessante pela proposta, uma investigação laboriosa sobre ritmo.